Ensinar ou não ensinar, eis a questão

Que instituições decidam promover a “meritocracia da dificuldade” e minimizar queixas de assédio moral, no mesmo contexto em que defendem a qualidade educativa, parece-me uma atitude pouco científica.

Na sequência de várias notícias que dão conta de elevados níveis de assédio em escolas superiores portuguesas, o anterior presidente do Instituto Superior Técnico, professor Arlindo Oliveira, escreveu uma crónica que toca no ponto fundamental do “equilíbrio que não destrua a ideia de exigência no ensino nem crie inaceitáveis pressões sobre os estudantes”. Foi com grande satisfação que a li e que vejo esta discussão tornar-se pública em Portugal, chegando aos colegas com mais responsabilidade institucional, tanto actual como historicamente.

Sendo a qualidade do ensino um tema sobre o qual tento aprender, encontro neste e noutros textos raciocínios recorrentes, por vezes defendidos em escolas que se vêem como sendo “de elite”. No entanto, parece-me que esta linha de argumentação parte de algumas premissas que, apesar de enraizadas, não têm muito fundamento e listo aqui quatro.

A primeira é uma equivalência entre dificuldade e qualidade do ensino: muitos colegas parecem assumir que exigência significa ser “duro” (ou o contrário de “mimar”) e que sem essa dureza não se pode garantir qualidade educativa. Não só não conheço nenhum estudo que o comprove como, pelo contrário, o consenso entre especialistas em pedagogia, neurociências e ciências da educação é que a aprendizagem é muito melhor em espaços seguros e em situações de bem-estar físico e mental. Que instituições decidam promover a “meritocracia da dificuldade” e minimizar queixas de assédio moral, no mesmo contexto em que defendem a qualidade educativa, parece-me uma atitude pouco científica.

A segunda é um erro lógico comum que confunde correlação com causalidade: como muitas das e dos estudantes que terminam os seus estudos nestas escolas se revelam trabalhadoras capazes, concluímos que isso se deve à formação que receberam e ao “filtro” que estas escolas proporcionam. No entanto, apesar de haver uma correlação, é muito difícil aferir o papel real das escolas por três razões principais: 1) escolas que se dizem de elite tendem a já receber estudantes fortemente motivados e seleccionados, por exemplo, através das médias de entrada. Isto levanta a questão da separação entre a qualidade do corpo discente e a qualidade do corpo docente. Ou seja, viriam aquelas estudantes a ser trabalhadoras excelentes qualquer que fosse a escola escolhida? Será a qualidade do corpo discente, mais do que a qualidade do seu ensino, que faz a escola ser considerada de “elite”? 2) a noção de que a escola deve funcionar como um filtro cai numa falácia argumentativa e 3) transforma-se numa profecia auto-alimentada. É uma falácia porque implica que os que são eliminados não eram bons o suficiente e não são bons o suficiente porque foram eliminados. Na verdade, ter estudantes que entram com médias altíssimas e que depois encontram cadeiras com taxas médias de reprovação superiores a 50% pode ser uma indicação mais da qualidade da docência do que da dos próprios estudantes. E auto-alimenta-se porque os que são eliminados saem com esse estigma (e, por vezes, em situação de fragilidade emocional) e, possivelmente, isso limita-lhes as hipóteses de encontrarem bons empregos, “confirmando” a decisão da escola. Não existindo mecanismos internos e externos de validação destes processos (por exemplo, que comprovem uma correspondência entre a qualidade do filtro e a qualidade dos estudantes), à imagem do que acontece, por exemplo, nos EUA, podemos continuar a encontrar “evidências” da nossa própria excelência sem que esta tenha qualquer relação com a realidade.

A terceira premissa parte de um enviesamento cognitivo conhecido como “viés de sobrevivência”. O exemplo mais conhecido é o da análise dos aviões de combate que regressavam à base depois de terem sido atingidos por fogo inimigo: em função dos locais em que os buracos das balas eram mais frequentes, os engenheiros definiam as zonas que tinham de ser mais protegidas, normalmente as asas e a cauda. Acontece que os aviões que tinham sido atingidos na cabine ou no motor raramente regressavam à base, estando menos representados na amostra. Parecia assim que, em vez de serem as áreas mais frágeis, eram as mais resistentes.

A maioria dos docentes e dos defensores destas escolas foi seleccionada de uma forma semelhante: são os sobreviventes. São aqueles que, por uma razão intrínseca (como a inteligência) ou extrínseca (como a situação financeira dos pais), conseguem terminar o seu ciclo de estudos e se convencem da sua excepcionalidade e do mérito do sistema. Naturalmente, uma hipótese alternativa e não testada é que os 30 ou 40% que ficaram pelo caminho não eram menos capazes, foi a escola que lhes falhou.

Mas vamos assumir (de forma perfeitamente teórica) que, de facto, não existe erro no processo de “filtragem” e que a elevada taxa de desistência se deve a uma menor qualidade dos estudantes, seja por factores intrínsecos ou extrínsecos. Não tem a escola a obrigação social de os encontrar onde eles estão, de se adaptar ao seu corpo discente (mais uma vez, já fortemente seleccionado e motivado), em vez de ser o corpo discente e a sociedade em geral a adaptarem-se às tentações elitistas de um corpo docente?

Finalmente, surge a premissa que apoiar estudantes em dificuldades é caro. Naturalmente, formações pedagógicas e gabinetes de apoio psicológico são importantes e têm custos. Mas respeitar alunos, não lhes dizendo repetidamente que não são bons o suficiente, ou cumprir códigos de conduta básicos é gratuito e nem isso parece ser prioritário.

Naturalmente, existem professoras e colegas verdadeiramente extraordinários, que fazem um trabalho de enorme valor e com pouquíssimas condições. Mas, muitas vezes, embatem em posições institucionais que tratam os problemas saúde mental e de assédio moral como sendo casos isolados em vez de reconhecer que, em conjunto, a crença nestas premissas tende a criar ambientes que são terreno estruturalmente fértil para um mau ambiente de aprendizagem.

Assim, será que, escondendo-se atrás das ideias de exigência e de qualidade da aprendizagem, muitas escolas são pouco exigentes consigo mesmas e com a qualidade do seu ensino? Espero que esta reflexão, entre ser um filtro ou ser um regador, que potencia a aprendizagem de todos os seus alunos, seja cada vez mais abrangente e profunda, mas arrisco dizer que algumas escolas superiores públicas portuguesas encontram-se de facto numa encruzilhada e têm de decidir se querem ou não aprender a ensinar.

(A autora foi estudante e docente convidada no Instituto Superior Técnico, tendo também passado pela Universidade de Harvard e pela Universidade Nova de Lisboa).

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