Dia 21: Quando os miúdos não são todos iguais (em casa e na escola)

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Querida Ana,

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Há dias em que percebo como a minha cabeça está tão de avozinha e, desta vez, não é no bom sentido. Com a distância da realidade do dia-a-dia de uma casa cheia de crianças, dou por mim a “romantizar” os cenários. Por exemplo, quando me falam de um 3.º período com ensino à distância e aulas na televisão, vejo crianças penteadas e vestidas a rigor (não com a camisa e as calças de pijama!), sentadinhas numa secretária onde as canetas e os lápis estão alinhados por cores, expectantes e atentas perante um ecrã, tomando notas com uma letra muito bonitinha. Enquanto isto as mães, placidamente, teletrabalham.

Hi, hi, até eu acabei o parágrafo a rir de incredulidade perante esta minha visão de um mundo ao estilo da Anita na Escola, mas estou segura de que foi assim que as aulas recomeçaram em tua casa! E na da maioria das outras famílias portuguesas onde, segundo dados do Observatório de Políticas de Educação e Formação, revelados pelo PÚBLICO, “três quartos dos alunos foram ajudados por alguém durante o período em que tiveram aulas em casa, sobretudo às disciplinas de Português (62%) e Matemática (70%)”. Sem surpresa, esse “alguém” foi a mãe.

Dão conta, também, que um quarto dos alunos, não fizeram os trabalhos enviados pelos professores nas duas semanas em que as aulas presenciais foram suspensas, por “falta de tempo” — é possível ter “falta de tempo”, neste tempo?

Já sei que vais estragar esta minha visão cor-de-rosa do mundo, até lá vou arrumar prateleiras de livros por autores.


Querida Mãe,

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Os avós e professores que partilham dessa sua visão podem sempre fazer um zoom, mas ao contrário: um zoom onde vejam o que se passa dentro da casa das famílias com filhos. Não prometo é que recuperem dessa sessão!

Parece-me que esta quarentena é a prova dos nove de todos as frases bonitas que as escolas gostam de promover sobre como a relação casa/escola é fundamental.

Uma das coisas mais difíceis de gerir nessa relação é que, na maior parte das vezes, tantos os pais, como os professore têm imensa dificuldade em aceitar que os miúdos não são iguais num sítio e noutro. Pode dar para os dois lados: “Não percebo, ele em casa não come nada!” ou “Mãe, o seu filho é desatento e malcomportado”, quando em casa mora um anjo.

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DR

Este desencontro não só resulta em mal-entendidos, como também numa sensação de incompreensão mútua — como é que é possível que as expectativas funcionem bem num contexto e noutro não, tratando-se sempre da mesma criança?

Em situações normais, os pais acabam por ficar com a sua forma de lidar com o filho, e os professores com a deles, fugindo — espera-se — de criticar da bancada a maneira como o outro lado cumpre a sua missão. As crianças, felizmente, são resilientes e flexíveis o suficiente para gerir bem os dois mundos.

Agora a coisa complica-se! Os professores enviam via e-mail, Zoom, Moodle ou o que for, as “expectativas” da escola, em formatos muito parecidos, se não iguais, aos que aplicavam nas aulas presenciais, e estas desaguam em casa, onde pais ansiosos por cumprir, e catequizados para a importância fundamental do currículo e das notas, as impõem aos filhos. Esquecendo-se que o contexto não é só diferente daquele que se vive na sala de aulas, como nem sequer é o de “casa” —aquele sítio onde até há um mês, os miúdos podiam descontrair e desligar do universo escolar (descontando os TPC), acolhidos por pais que procuravam fazer o mesmo.

Para agravar tudo isto, nalgumas famílias, pais e filhos precisam de flexibilidade, noutras precisam de muita orientação, e há ainda aquelas em que uns requerem orientação e outros flexibilidade. Por isso, não há receitas... Esta é a altura em que se deve pôr em prática tudo aquilo que sempre se apregoou ser o pilar básico da Educação: respeitar a individualidade de cada criança e de cada família. Sem a febre do “tem que ser tudo igual para todos, para ser justo.” Não tem.

Às vezes, para que todas as crianças vejam para lá do muro é preciso dar uma escada de três degraus a uma mais baixinha, e apenas de um à mais alta.

Parece-me, que esta é a altura para os professores lembrarem os pais que a aprendizagem se faz em milhões de momentos ao longo do dia, e que não há só uma forma de aprender Matemática ou Português. E de deixarmos as crianças o mais descontraídas possível, para o ano vão para a escola, onde haverá professores humanos que sabem o que se passou, e que, com tempo e calma, vão trabalhar com eles o que for preciso recuperar.

A única coisa que não pode sofrer com esta pandemia é a relação entre os pais, os professores e os alunos. Se conseguirmos que aprendam que é possível transformar uma circunstância tão difícil numa oportunidade, essa sim, será uma aprendizagem que vale a pena.

Agora pode voltar aos seus livros, mas encontre espaço para o novo Anita na Escola-Virtual


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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