O mundo é grande e o filme pequenino

Numa entrevista ao Ípsilon, António-Pedro Vasconcelos (APV) considerou que “o único cinema político neste momento” é o dele. “Não vejo outros.” E surpreendia-se: “Surpreende-me que o cinema português não fale da realidade.” Eu fiquei estarrecido. Enquanto lia a conversa, listei Cavalo Dinheiro (2014) — caberia todo o cinema de Pedro Costa, como cabe a monumental exposição de Serralves, Pedro Costa Companhia; As Mil e uma Noites de Miguel Gomes (2015); São Jorge (2016), de Marco Martins; Colo (2017, mas todo o cinema de Teresa Villaverde é ferido pela realidade...); Fábrica de Nada (2017), de Pedro Pinho, proposta de pensamento e de acção perante a dificuldade de ler o mundo hoje. E cabe o mundo nesta lista porque se algo marca o cinema em Portugal na travessia da crise é o ardor com que se deseja fixar experiências e vidas, inscrever aventuras individuais no colectivo, apropriando-se a ficção do real para se elevar.
Esse ardor só pode passar despercebido a quem não se interessa já. E há também displicência, por exemplo, quando diz — entrevista de A.P.V. ao Observador — que o cinema português “hoje é irrelevante” porque “nunca ganhou o prémio de Melhor Filme nos principais festivais de cinema, como Cannes, Berlim ou Veneza”. Bem, colocando a coisa assim, vendo nos prémios, ou num Óscar, a medida da relevância... então e a Palma de Ouro de Cannes e o Urso de Ouro de Berlim, 2010 e 2012, respectivamente, para João Salaviza?

A não ser que se tome aquele “não vejo outros” por uma afirmação de intenções — não lhe interessa mesmo ver filmes —, o problema com o real é notoriamente o embaraço do realizador de Parque Mayer, filme que esta semana chega às salas. Essa forma de elidir a realidade e a falta de empatia e de porosidade explicam o que se vê no cinema paroquial de Parque Mayer.

Não é surpresa a reconstituição museológica deste 1933, ano de configuração do Estado Novo e de consolidação fascista, como cenário para o cruzamento de caminhos e interesses entre uma vedeta cabotina (Diogo Morgado), uma pretendente a estrela acabada de chegar a Lisboa vinda de Fátima onde apascentava cabras (Daniela Melchior) e o encenador da revista (Francisco Froes).

Já se sabe e reconhece-se aqui: há um lugar-comum que serve de bengala, mas que deve ser denunciado como fake news, segundo o qual a comédia portuguesa dos anos 30/40 foi um cume artístico e comercial. Essa impostura foi a base dos remakes, cortesia do realizador e produtor Leonel Vieira, de O Pátio das Cantigas (2015), O Leão da Estrela (2015) e A Canção de Lisboa (2016). Foi um nadir cinematográfico, um embuste do audiovisual à medida da “era de conteúdos”, que fez trocadilhos e pendurou bandeirinhas num país de papelão. Esse cinema (esta falta de cinema) só puxa pelo pior de nós: conservadorismo, imobilismo, falta de curiosidade e o medo da diferença. Do que é cinematograficamente diferente e não só: os remakes dos exemplares da “década de oiro” eram colecção de exotismos — em O Pátio das Cantigas Bollywood, tuk tuks e gays eram bestiário...

Para esse mundo fechado, o Parque Mayer das décadas de 30 e 40 será um Monument Valley. Mais tarde ou mais cedo alguém faria uma romaria ao cenário. Orgulhosamente sós ou irreversivelmente sós?

Não vamos sublinhar a ausência de meios que impede a suspensão da descrença nas cenas de conjunto em Parque Mayer — aqueles figurantes no “adro da igreja”, o Parque Mayer reconstituído, andam e olham mesmo como figurantes. Reconstituiu-se menos um certo mundo, demonstra-se mais o sate of the art telenovelesco.

Mas é preciso falar do trabalho sobre o individual, o íntimo, que está todo ele dependente do sopro (ou não) de um cineasta: ora, isso, aqui, é pura convenção e papelão, o que impede as personagens de se libertarem da tipologia para se tornarem aventura — não há vertigem, não há grandeza. A Comédia e a Vida, French Can Can e Jean Renoir? São inatingíveis — e não continuemos pela evocação do sublime, Jacques Becker, por exemplo, porque seria cruel. E também não é O Último Metro (1981), de Truffaut.

Falemos, então, dos diálogos, e das situações: replicam trocadilhos, tiques e tipos, encostando-se Parque Mayer à revista em vez de jogar com a revista. Em vez de sobressaltar o espectador com as diferenças de nível, o filme e a revista dentro do filme, em vez de aprofundar a visão — Diogo Morgado, por exemplo, é sempre boneco animado, na “comédia” e na “vida”, o actor tem pulmão, a personagem é que fica sem coração.

Falemos, ainda, da inibição do realizador face à explicitação da vida íntima de uma personagem homossexual, o contrário do que faz com as personagens heterossexuais. “Condena-a” à elipse, ao armário figurativo (para quem diz que faz o único cinema político neste momento...).

E há aquele final, em que as personagens se lembram de resistir ao salazarismo, hasteando o filme a bandeirinha da liberdade e da alegria. A dedicatória final soa a falso, tal como são forçadas as declarações de Vasconcelos à RTP um dia destes, a puxar para dentro do filme os fascismos e Bolsonaro...

Parque Mayer não reconstitui um mundo pequenino. É a insistência, para lá do prazo de vida, com um cinema pequenino. Gostaria de perguntar à ministra da nossa Cultura: isto não lhe pareceu tão vetusto quanto a tourada?

Sugerir correcção
Comentar