Ventura unchained

Profeta, explorado, vingador, zombie, fantasma: uma criatura de cinema liberta-se em Cavalo Dinheiro, filme a fumegar.

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Ventura, o regresso. E with a vengeance. Assim cantam Os Tubarões em Cavalo Dinheiro, a canção chama-se Alto Cutelo:

“Explorado/Enganado/Mas um dia vou voltar/Monte Gordo e Malagueta/A água vai jorrar”

As gentes de Juventude em Marcha (2006), um filme anterior de Pedro Costa, tinham-se posto a caminho. Entre eles, havia um herói de inquebrantável solidão, olhar perdido que não arredava pé do seu passado, Ventura, imigrante cabo-verdiano que chegara a Lisboa nos anos 70.

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João César Monteiro/João de Deus, Recordações da Casa Amarela

Para ele, e para eles, Pedro Costa criara espaço, nessa anterior longa-metragem, para uma afirmação de existência, espaço para mandarem as suas cartas e contarem as suas histórias. Juventude em Marcha era, se calhar, um documentário sobre essas ficções, um protocolo contido, protector (e até por isso mesmo: um auto pícaro e lírico). Era também um filme claro sobre a escuridão. Mais do que Ossos, de 1997, mais do que No Quarto da Vanda, de 2000. Era escuro e cheio de segredos como os iniciais O Sangue (1989) e Casa de Lava (1994) – foi aí, em Cabo Verde, que tudo isto começou, aliás.

Em Juventude em Marcha iluminava-se o vampirismo. Ao seguir essa juventude das barracas escuras das Fontainhas para um bairro social de luz demasiado branca que a deixava em perda com os seus fantasmas, Pedro Costa reinventava-se. Foi nessa altura que Ventura começara a deslizar para o silêncio. Foi nessa altura que, numa conversa entre ambos, o realizador – contou-nos Costa numa entrevista em 2006 – descobriu que entre 1974/1975 estiveram, talvez e sem o saberem, os dois nos mesmos sítios, no Jardim da Estrela ou em São Bento. Um galvanizado com a sua História, com os filmes, com a música e com o 25 de Abril, o outro paralizado pelo medo, ignorado pela Revolução.

E terá sido, anos depois nas Fontainhas, um encontro de iguais: “É os olhos, acho eu. É o que me dizem. É também o puxar muito ao negrume. É um tipo muito destruído e eu também. Muito tradicionalista, teimoso, e muito secreto. E inatingível. Mete medo, é difícil a relação com ele, foi um tipo que se fechou.” Citamos essa entrevista de 2006, feita na apresentação de Juventude em Marcha na competição do Festival de Cannes. Nela Costa dizia ainda que estava tudo em aberto entre eles e o cinema: “A coisa está quase apurada para poder vir a ser outra coisa ainda, para eles passarem para a ficção. Eles, não eu.”

Continuaram então em marcha, em direcção ao passado e a essa noite escura: Cavalo Dinheiro.

É a actualização de um protocolo, agora definitivamente expressionista. Tudo continua a passar-se entre eles, que não haja dúvidas. Quer dizer: Cavalo Dinheiro é um filme que se tacteia. Cada plano parece ser deflagrado, lentamente, intensamente, pelos segredos, pelos pactos que nele se escondem. Como espectadores podemos sempre regressar a ele para, a cada nova visão, tentar sossegar com a ilusão de que os planos do filme, afinal, nos deixam ver alguma coisa, nos incluem e não nos derrubam. Como se houvesse uma outra possibilidade, a cada nova visão, de (melhor) respirar dentro de um sonho. Mas Cavalo Dinheiro só existe por causa do que esconde.
E no entanto...

As mãos de Ventura alongaram-se. Nunca nos fora dada a oportunidade de reparar nas suas unhas tão brancas e duras. E a tremura do corpo...

O cinema intervém, distorce aquele que sobe e desce as escadas. Pedro Costa coloca Ventura à solta na cidade – andam a marchar os dois juntos, é claro. Não nos dá Ventura de bandeja, porque a protecção continua feroz. E aquele olhar perdido continua por interceptar, o encantamento por quebrar. Mas no lugar do equilíbrio entre documentário e ficção que Juventude em Marcha propunha de forma tão pura, está agora matéria fumegante.«

É a altura de assumir que em vez de Fritz Lang ou de Jacques Tourner ou de John Ford ou de...em Cavalo Dinheiro caminhei com Recordações da Casa Amarela e com João César Monteiro (claro, é uma forma de caminhar também com Murnau). Como se todo o filme de Costa estivesse sempre a fumegar, tal como no plano final do filme de Monteiro: João de Deus, depois de Lívio (Luís Miguel Cintra) o ter libertado e lhe dizer para infernizar, “Vai e dá-lhes trabalho”, metamorfoseando-se, mãos alongadas, o corpo distorcido, Nosferatu desembarcando em Lisboa, um vampiro a sair das catacumbas da cidade.

Sons de passos, corredores de hospitais e asilos - é também esse o som de Cavalo Dinheiro. Ventura libertado, profeta, explorado, vingador, zombie, fantasma, criatura de cinema, enfim, ícone, se calhar o único, hoje, no cinema português. Não lhe apanhamos o olhar, mas ele invade-nos. É a sua vingança, meter-nos no seu sonho, no tempo da sua memória, no medo que está na História portuguesa por contar.

“Explorado/Enganado/Mas um dia vou voltar/Monte Gordo e Malagueta/A água vai jorrar”

A metamorfose aconteceu. Vem, Ventura, dá-nos trabalho.

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