Cineasta, do nosso tempo

Desde a sua estreia em Locarno, Cavalo Dinheiro tornou-se num dos acontecimentos cinematográficos de 2014 para uma comunidade crítica global que considera Pedro Costa um dos mais importantes cineastas contemporâneos. Longe de unânime, mas respeitado pela integridade.

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Marta Mateus

Ainda Cavalo Dinheiro não estreara em Portugal e já era um dos filmes de 2014 para uma das mais importantes revistas de cinema - terceiro lugar na lista da britânica Sight & Sound, construída a partir das escolhas de 112 críticos, programadores, cineastas e outros nomes ligados ao cinema. Tudo isto apenas à conta das suas passagens em festivais – Locarno primeiro, onde venceu Melhor Realização, depois Nova Iorque, Londres, Copenhaga ou Atenas. Portugal é, esta semana, o primeiro país a ter o novo filme de Pedro Costa em exibição comercial.

Podemos olhar para esta presença na lista da Sight & Sound, depois de Cavalo Dinheiro ter sido aguardado por um sector da crítica em Locarno “como quem espera o Messias” (nas palavras de Nicholas Elliott da revista Cahiers du Cinéma), como uma “consagração” de um dos nomes que mais tem colocado o cinema português nas “bocas do mundo”. Afinal, o anterior Juventude em Marcha (2006) esteve na competição de Cannes, o mais importante de todos os festivais de cinema. E a Criterion Collection, a mais prestigiada editora de DVD do mundo, juntou em 2010 a “trilogia das Fontaínhas” formada por Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha numa edição que deu a volta ao mundo, contribuindo para a sua aclamação como um dos mestres do cinema de autor contemporâneo.

Em Portugal, Pedro Costa continua a ser uma espécie de E.T. - uma figura esquiva, distante, “à parte”, que gera paixões e ódios mas parece existir num patamar de acesso restrito que nem a sua aclamação crítica, nacional ou internacional, consegue transcender. Lá fora, o crítico britânico Jonathan Romney fala de Costa – no catálogo do festival de Londres, aquando da passagem de Cavalo Dinheiro – como “um dos verdadeiros poetas do cinema europeu contemporâneo” e como “um grande cineasta empenhado e um mestre escultor do espaço e da presença humana”.

O crítico e programador Dennis Lim, um dos programadores do festival de Nova Iorque, diz ao Ípsilon que, para ele, Costa é um dos cineastas mais importantes hoje no activo. “E é também um dos mais entusiasmantes, porque luta com questões grandes mas fundamentais: como é possível criar um meio-termo significativo entre o documentário e a ficção, ou encontrar uma linguagem cinemática que aborde a história (incluindo a história do cinema) mas também fale ao presente”.

O que não o torna unânime. Geoffrey Cheshire, do site RogerEbert.com, chama-lhe “um querido dos críticos e dos festivais”, apontando as razões “maioritariamente dúbias” que ouvimos muitas vezes a seu propósito (inclusive de fontes portuguesas): “Os seus filmes constroem superfícies profundamente estéticas, envernizadas, à volta de temas e atitudes políticas que estão na moda. Como a banda rock de que só você e 12 outras pessoas gostam, prega a um séquito que já pensa como ele.” (Mas mesmo Cheshire admite, na sua crítica a Cavalo Dinheiro, visto no festival de Nova Iorque, o “inegável poder imagético” do filme, “algures entre Rembrandt e Eraserhead” de David Lynch.) Logo a seguir à estreia de Cavalo Dinheiro em Locarno, não foram poucos os espectadores que se mostraram perplexos com o que tinham acabado de ver e que não se reviam nas palavras do director do festival, Carlo Chatrian, elogiando Costa como um dos cineastas centrais dos nossos dias.

Mesmo os críticos mais entusiastas reconhecem que o cinema de Costa é quase impossível de “vender” convencionalmente. O crítico e programador canadiano Mark Peranson, responsável da revista Cinemascope, programador de Locarno e um dos mais apaixonados defensores de Costa, fala de Cavalo Dinheiro como uma “obra-prima extremamente inclassificável” que “resiste a sumários limpinhos”: “examinar o filme como um todo, ou como uma ligação de cenas que fluem umas para as outras, é uma impossibilidade.” E cita a sensação que por vezes tem dos próprios filmes procurarem deliberadamente separar o trigo do joio – ou os espectadores que realmente estão dispostos a mergulhar nos labirintos do seu cinema daqueles que lhe passam ao lado (coisa que Costa não nega).

A dimensão onírica de Cavalo Dinheiro, e as suas evocações do passado histórico português e particularmente do 25 de Abril, levaram vários observadores internacionais a perguntar-se se este não será um filme que só os portugueses poderão apreender na sua totalidade. A crítica austríaca Alexandra Zawia, para quem “nenhum dos seus filmes é verdadeiramente acessível”, admite ao Ípsilon que Cavalo Dinheiro, que considera um filme de génio, é capaz de ser mais fechado do que os anteriores. Mas pensa também que essa precisa especificidade pode, paradoxalmente, tornar o filme mais acessível aos espectadores internacionais. “É um filme que tem para mim um apelo emocional diferente, e inferior, ao que terá para um português. Costa é capaz de achar mais fácil falar deste filme com pessoas que não partilham o mesmo passado cultural, porque isso lhe deixa o filme a ele. Não é um filme que ele queira partilhar com outros, mas que teve de fazer porque sentiu a urgência de expressar algo.”

Zawia refere-se à declaração que Costa fez em Locarno – e que prolongou numa longa entrevista à Cinemascope, conduzida por Mark Peranson – de o cineasta estar a fazer os filmes que “tem de fazer” e não aqueles que “quer fazer”: “faço o que sinto que tenho de fazer agora, mas estes não são os filmes que gostaria de fazer. Mas talvez o mundo não precise dos outros filmes que eu quereria fazer.”

O lado críptico de frases como esta, que Costa insiste em nunca resolver por completo, apenas tem contribuído para amplificar a mística que o rodeia: trabalha quase em segredo com equipas fiéis e mínimas, apenas mostra um filme quando está pronto, leva o tempo que for necessário, recusa-se a “vender” os filmes como produto. Alexandra Zawia diz que esse “purismo” é uma das razões do respeito que granjeou junto dos cinéfilos. “Ele não parece querer fazer nada que ajude a promoção ou o marketing dos seus filmes. Apresenta-se como a forma pura da arte, algo que se exprime independentemente da sua ‘rendibilidade’. Por vezes vejo cineastas como ele, que dizem fazer arte, mas que quando encontram um distribuidor aceitam fazer marketing e promover os filmes de modos que nada têm a ver com o que realmente são. Costa parece dizer ‘que se lixe isso tudo’.”

Aquando da estreia em Locarno, Cavalo Dinheiro chegou sem trailer oficial nem dossier de imprensa, e a produção pediria mais tarde que as poucas imagens fornecidas pela organização fossem substituídas por “não respeitarem o formato de imagem correcto”. Como quem acredita que é o filme que deve falar por si, num idealismo que corre o risco de restringir o seu público àqueles que já estão convencidos à partida.

Alexandra Zawia medita sobre essa aparente contradição. “Ele parece sempre ser demasiado cool para ser idealista, e fica-se muitas vezes por um pessimismo estilizado. Parece dar-se por contente por o seu trabalho ser muito fechado sobre si próprio. Mas por outro lado tenho certeza que ele gostaria de ter mais reconhecimento.”

Em Locarno, no encontro com o público que acompanhou a projecção do filme, moderado por Mark Peranson, Costa falou de sentir que os seus filmes ainda não “permanecem” como os dos grandes cineastas de quem gosta: Jacques Tourneur, Fritz Lang, Jean-Marie Straub, Jean-Luc Godard, John Ford, Jacques Rivette... (Foi visto nas sessões fora de concurso de Kommunisten, de Straub, e Adeus à Linguagem, de Godard.) Uma litania de autores que pertencem a uma era de ouro do cinema (de Hollywood e de autor), e da cinefilia, uma genealogia evocada simultaneamente como referência e caução, reverência e desafio.

Se não hesitou, no festival suíço, em colocar “no seu lugar” aqueles que projectam no seu cinema referências cinéfilas, na entrevista à Cinemascope, expandindo alguns dos mesmos tópicos, admite como reais as citações do expressionismo alemão, de Peter Lorre (o actor alemão que o M de Fritz Lang e Casablanca celebrizaram) ou de Val Lewton (produtor da Pantera de Tourneur). E assume uma dívida aberta a Nicht versöhnt (1965), um dos filmes centrais da obra de Straub e Danièle Huillet (cujo processo de trabalho documentou em 2001 em Oú gît votre sourire enfoui?) - mas também às aventuras de Blake e Mortimer, os heróis de BD criados por Edgar Pierre Jacobs.

Para Alexandra Zawia, é nessa linhagem que reside uma das chaves do seu cinema. “Não vemos hoje em dia muitos cineastas que abordem o cinema de modo tão profundo e tão atento... A sua linguagem cinematográfica é tão inegavelmente única, sem ceder a compromissos, que é impossível ignorá-la.” Goste-se ou não. E para quem quiser procurar explicações, talvez o melhor mesmo seja procurá-los no próprio cinema. “Tudo o que posso dizer está no filme”, disse Pedro Costa em Locarno. A cada um agora de o encontrar.

 

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