Portugal: este país de maravilhas existe

Entre o Verão de 2013 e o Verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal filmando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Portugal, país das maravilhas. Como na canção de Leonard Cohen (“We are ugly, but we have the music”), somos feios mas temos as histórias.

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Durante um ano Miguel Gomes inventou um processo de rodagem. Agora propõe uma forma diferente de descoberta: O Inquieto (esta semana), O Desolado (a 24 de Setembro), O Encantado (1 de Outubro) RUI GAUDÊNCIO
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Em As Mil e Uma Noites Miguel Gomes inventa um processo: a partir do momento em que descobria uma história real que lhe interessava, partia para o local, filmando em cima dos aconteci-mentos, reagindo a eles, mas com ficção DR
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As Mil e Uma Noites , um filme triplo que chega às salas de cinema com semanas de intervalo entre cada uma das partes. Cada volume é autónomo, auto-suficiente, mas lança o desejo de ver o próximo como nos folhetins DR
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Cada filme tem a sua própria tonalidade, como se pressente pelos títulos: O Inquieto, O Desolado, O Encantado (na imagem) DR
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O que é mais surreal, animais que falam, um assassino que é aclamado pela população como um herói, homens que têm pássaros em casa e os ensinam a cantar, a troika em cima de camelos? DR

Nos dois últimos filmes de Quentin Tarantino, o cinema tem-se vingado da História, contando a sua própria versão dos acontecimentos. Os nazis mataram milhões de judeus? Em Sacanas Sem Lei, Hitler é morto numa sala de cinema em chamas. A escravatura é o pecado original da América? Um negro reduz uma plantação de escravos a um banho de sangue em Django Libertado.

Entre o Verão de 2013 e o Verão de 2014, Miguel Gomes percorreu os quatro cantos de Portugal filmando um país em crise sob os efeitos da austeridade. Pode dizer-se que inventou um método: um pequeno grupo de jornalistas contratados pelo realizador vasculhou acontecimentos e fait-divers em toda a imprensa, fazendo, de seguida, a sua própria investigação e reportagem; Gomes e a equipa do filme iam para o terreno quase imediatamente, reagindo aos acontecimentos reais a quente, e com ficção. O resultado é surreal, e nem sempre isso se deve à ficção. O que é mais surreal, animais que falam, um assassino que é aclamado pela população como um herói, homens que têm pássaros em casa e os ensinam a cantar, a troika em cima de camelos?

O que Miguel Gomes – realizador de Aquele Querido Mês de Agosto e de Tabu – alegadamente não sabia quando acabou de rodar é que tinha feito não um filme mas três. Um filme triplo que chega às salas de cinema com semanas de intervalo entre cada uma das partes. Cada volume é autónomo, auto-suficiente, mas lança o desejo de ver o próximo como nos folhetins. As Mil e Uma Noites, assim se chama este blockbuster artesanal e inventivo, por se inspirar na estrutura do livro homónimo: o filme não é uma adaptação, apesar de ter a sua própria Xerazade como cronista do reino. Mas, como se vê logo no primeiro volume, Xerazade é Miguel Gomes: é a sua cabeça que está a prémio porque filmar assim, sem rede, como se fosse uma aventura, só pode ser perigoso.

As Mil e Uma Noites é uma trilogia com pavor da fixidez, em permanente mutação, um laboratório de estilos narrativos e cinematográficos. Cada filme tem a sua própria tonalidade, como se pressente pelos títulos: O Inquieto (Volume 1, esta semana nas salas), O Desolado (Volume 2, estreia a 24 de Setembro), O Encantado (Volume 3, a 1 de Outubro). O primeiro prepara o espectador, explicando-lhe o projecto; o segundo fecha-se sobre almas penadas e solitárias – se a personagem principal de Mil e Uma Noites é a comunidade, o colectivo, para onde fugiu toda a gente?; o terceiro é redentor: depois de passar por vários estados – a perda, a combatividade, a recriminação, a impotência, a derrota – o país vê-se ao espelho e descobre que sobreviveu. É aqui, neste capítulo final, que o acto de vingança é explicitado. Não se pode dizer que o que o filme retrata pertence à História – da última vez que olhámos, ainda éramos um país depauperado, desempregado e desdentado – nem Gomes propõe, como Tarantino, uma versão alternativa. Mas ganha espessura a sensação que paira ao longo de todo o projecto: Portugal, país das maravilhas. Como na canção de Leonard Cohen (“We are ugly, but we have the music”), somos feios mas temos as histórias.

Depois da paródia, das piruetas, da catarse, da neurose, o tour de force emocional do filme parece estar neste grupo de marginais, alguns deles ex-reclusos, habitantes de guetos sociais, que criam passarinhos em casa e os ensinam a cantar. Eles existem, de facto, o cinema não os inventou: Chico Chapas, Ribeiro, Mestre, Quitério e o seu tentilhão perneta.

Dois dias depois de ter estreado o Volume 2 em Paris, Miguel Gomes reencontra-os no Grupo Recreativo Cultural Onze Unidos – o azulejo com a palavra UNIDOS desapareceu –, colectividade com vista para Chelas (Lisboa), para a foto de família solicitada por um semanário. Gomes e Ribeiro bebem minis ao balcão, Mestre e Chico Chapas bebem leite com chocolate. Emblema do Benfica tatuado no meio do peito, entre cabelos brancos, cara e corpo secos, Chico Chapas pedalou desde Moscavide para aqui chegar. No filme de Miguel Gomes, faz de si próprio, um reconhecido passarinheiro, e ainda interpreta um assassino em fuga (inspirado em Manuel Palito) num western do Volume 2. Uma jornalista do Le Monde vem a Portugal entrevistá-lo para a estreia do terceiro volume em França. Chapas também vai entrar num filme francês. Gomes e a sua comitiva de passarinheiros seguem para Camarate, onde têm mesa posta numa outra colectividade (“Colectividade vem a passar momentos complicados, por isso pedimos aos nossos associados que regularizem as cotas”, lê-se num comunicado à entrada). Chapas veio de bicicleta, mais uma vez, os outros de carro. Antes de almoço, Ribeiro lidera o cortejo até ao seu viveiro de pássaros, com uma centena de tentilhões recém-apanhados. Pelo caminho, Miguel Gomes eleva as expectativas: “Vocês estão com muita sorte de ele vos deixar tirar fotografias lá dentro. Isto é a caverna do Ali Babá.”

A entrevista que se segue começou com um bitoque e minis num salão de jogos em Camarate e terminou na esplanada de uma pastelaria das Avenidas Novas em Lisboa: vendo despontar a tarde – e a namorada numa outra mesa – Miguel calou-se.

As Mil e Uma Noites remetem para um modelo padronizado do cinema comercial – os filmes em série –, mas subvertem essa lógica para criar algo de atípico ou mesmo radical. O espectador está habituado a que um filme sejam três, ou mais. Eles só não costumam aparecer todos ao mesmo tempo.
Quando percebi que seriam três filmes – descobri isso na montagem –, escrevemos o título de cada volume da Guerra das Estrelas: A Guerra das Estrelas, O Império Contra-Ataca e o Regresso de Jedi. Havia essa noção de que estávamos a flirtar com um modelo industrial que não era o do filme. Mas o que aconteceu foi que estive um ano a filmar, combinei um determinado número de semanas – quase que o cumpri, passei só em duas semanas, acho que eram 14 e passaram a ser 16. E o resultado de 16 semanas de rodagem deu origem a três filmes. Desconfiava que havia qualquer coisa que se podia passar porque achei que desta vez estávamos a trabalhar mesmo muito. E depois percebi que isso devia-se ao facto de estarmos a fazer três filmes e não um.

Há no seu gesto de fazer três filmes um desejo de perverter, de brincar aos blockbusters, às superproduções? A explosão de uma baleia no primeiro volume parece um elemento mais espectacular do que decisivo para a narrativa.
De facto, a baleia é qualquer coisa com um lado espectacular – sobretudo num episódio com trabalhadores desempregados a falar da sua situação. São coisas que habitualmente não associamos, dois regimes de representação de cinema muito diferentes. Há uma relação entre o facto de a personagem desse episódio ser cardíaca e aquilo que ela ouve, entre o estado de saúde dele e o estado do país. É como se o coração dele pudesse rebentar a qualquer momento. A tensão sobe depois de ele falar com alguém e finalmente o que explode não é o coração dele mas a baleia. A cada história da Xerazade, havia essa negociação entre o real e o imaginário. Nalguns casos essa relação de forças é muito violenta, como nesse episódio, O Banho dos Magníficos: a baleia explode e a seguir um desempregado fala durante dez minutos para a câmara. Noutros as coisas estão mais misturadas. Achei que o filme seria mais rico se essa relação entre o imaginário e o real estivesse sempre em mutação.

A explosão da baleia e o desempregado a falar dez minutos: uma coisa é tão violenta quanto a outra?
O que é violento é a passagem de uma coisa à outra. Há ali um grande corte. Normalmente não associamos esse tipo de coisas. E pode ser mais violento para o espectador fazer essa ligação. Se me está a perguntar se uma explosão de uma baleia no sonho de uma personagem de ficção tem as mesmas propriedades que o depoimento de um desempregado, acho que não. Acho é que, dentro de um regime de um filme, uma coisa pode dar força à outra. Aquela explosão só existe porque existem os desempregados a falar. São eles que fazem explodir a baleia.

Disse que a ideia de fazer três filmes surgiu na montagem. Como é que os produtores reagiram?
Navegaram completamente à vista. Quando se iniciou o filme, não havia o financiamento todo, começámos a rodagem com uma parcela – não consigo dizer quanto, mas tínhamos muito menos de metade do que o filme custou. Havia quase uma questão de urgência por causa de tentar apanhar as coisas da realidade que se estavam a passar. E os produtores decidiram arriscar e começar sem ter o filme financiado. Para mim, foi quase o equivalente daquilo que nós também nos propúnhamos: iniciar um filme sem saber qual era a sua estrutura. Sabíamos que tínhamos um determinado período e um escritório com uma série de pessoas preparadas mas também estávamos no escuro. E a produção resolveu fazer a mesma coisa.

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Fez os três filmes com o orçamento que tinha para um?
Este filme teve muito mais dinheiro do que eu alguma vez tive devido ao facto de o Tabu ter corrido tão bem, sobretudo em França. Desta vez conseguimos ter quase todos os financiamentos que existem no circuito a nível europeu. E tivemos outras coisas: um milionário suíço chamado Michel Merkt decidiu investir a nível pessoal no filme. Sabíamos que se tivéssemos menos dinheiro teríamos de filmar coisas menos caras. Sobretudo, filmar menos histórias. Mas como correu bem, acabámos com três filmes. Havia a possibilidade de se fazer um filme muito grande ou a possibilidade de mandar muitas histórias para o lixo. Mas acho que os produtores perceberam que essa era uma não-opção. Porque a justa medida daquela nossa experiência de cinema tinha sido a de um ano e o ponto de partida era a estrutura das Mil e Uma Noites, que não é propriamente um livrinho. A edição que tenho também está organizada em três volumes, eu mostrei-lhes os livros para eles comprovarem (risos). Para além disso, percebi que cada filme podia ter uma autonomia, uma tonalidade específica. As histórias que aparecem no Volume 2 são as mais elaboradas, mais dramáticas, têm uma força muito grande. Do ponto de vista do cinema estão mais bem defendidas, são menos descosidas do que outras, por exemplo, no Volume 1...

Menos descosidas?
É aquilo de que falava: que na negociação entre o real e o imaginário, por vezes as coisas estão mais ligadas, outras vezes há essa violência de passar do real para o imaginário de forma mais visível. E eu também queria isso. Num filme único eu teria tendência para misturar as histórias do Volume 2 com as do Volume 1 e de equilibrar mais as coisas. Percebi nessa altura que não, que termos algo tão musculado como o Volume 2 e algo tão caótico como o Volume 1 seria mais interessante do que tentar equilibrar as histórias ou que cada volume fosse uma variação em relação ao anterior.

A produção reagiu com um certo pânico: a pós-produção de três filmes é mais cara, e depois como é que se estreia uma coisa destas... O filme coloca questões a toda a gente. Os jornalistas, desde Cannes, andam um pouco perdidos, sem saber como hão-de fazer a cobertura deste filme. A Variety mandou-nos um mail a dizer: “Depois de várias horas de discussão, chegámos à conclusão que vamos ter três críticos para cada um dos filmes. Um crítico vê só o primeiro volume, o outro vê o primeiro e o segundo volumes, e o último vê todos.” Quando a Variety tem reuniões para decidir como fazer a cobertura de um filme, é porque ele de facto propõe uma maneira de ver diferente. 

O espectador também pode mudar a ordem em que vê os filmes, pode fazer a sua própria montagem.
Uma coisa que me diverte, quando mostro o Volume 2 ou o 3, é perguntar quem é que viu os outros; há sempre uns que não viram os anteriores. Eu até gostava de no DVD ter um modo shuffle. Mas obviamente aquilo é demasiado longo para caber tudo num disco, portanto não dá. Embora este percurso – do um para o dois, e do dois para o três – conte uma história, para mim.

O ponto de partida foram as páginas dos jornais: acontecimentos da actualidade em qualquer ponto do país, que uma pequena equipa de jornalistas investigou e reportou aos argumentistas. Mas o filme é o contrário da reportagem. Aliás, desconfia das narrativas jornalísticas enquanto formas de retratar a realidade. Não é contraditório contratar jornalistas para trabalharem no processo?
Não acho que o filme seja uma crítica. É outra coisa, que um jornalista não pode fazer: não pode inventar baleias que explodem, não pode fazer essas coisas. O cinema pode juntar essa dimensão que é interdita ao jornalismo.

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No Volume 1, filma um jornalista da TVI a fazer um directo sobre a greve nos estaleiros navais de Viana do Castelo. Vêmo-lo à porta dos estaleiros, nem sequer entra, não fala com ninguém. Quando o filme já esteve lá dentro com aqueles homens.
A administração proibiu qualquer jornalista de lá entrar. O filme começa com os trabalhadores no cais porque a única maneira que eu tinha de aceder a eles era enfiar-me num barco. Falámos com eles para estarem presentes àquela hora e naquele ponto, metemo-nos num barco e filmámos da maneira que pudemos filmar, por água. Estávamos dentro dos estaleiros, mas não estávamos em terra. Mas, sim, a questão do jornalismo e a forma como se dão noticias aparece logo nos primeiros minutos do filme: vê-se a câmara a desligar, tudo aquilo a ser desmontado, os jornalistas a sair do terreno e continua-se a ver as pessoas lá dentro a andar, o que reforça essa sensação de toca e foge.

Porque precisou de jornalistas quando tantas vezes a ligação com os factos reais é ténue ou camuflada ao ponto de quase nem se distinguir esse vínculo com a realidade?
Dou-lhe um exemplo, o episódio do Simão Sem Tripas: toda a gente reconhece que é a história do Manuel Palito. Quando a Maria José Oliveira, jornalista, esteve a investigar essa história, falou com o padeiro que se encontrou com o Palito e ele explicou exactamente como é que o Palito lhe pagou com uma nota de 20 e qual foi o troco. Esse momento está no filme. As questões práticas de fazer um troco a um assassino à solta, esse lado mais banal da realidade dá uma dimensão tão surreal aos filmes que não sei se escreveria uma coisa assim só da minha cabeça...

Ter jornalistas associados ao processo também foi uma forma de dar uma caução de realidade ? Para quando o espectador desconfiasse de que uma história não tinha partido de acontecimentos reais?
O filme não precisa de fazer prova dos factos. Os jornalistas eram algo entre a equipa de realização e a equipa de produção. Obviamente sabiam e aceitaram que muito desse trabalho seria invisível porque depois seria completamente transformado pela ficção. Mas se eu não os tivesse o filme seria diferente.

Em Mil e Uma Noites inventa um processo: a partir do momento em que descobre uma história real que lhe interessa, parte para o local, filmando praticamente em cima dos acontecimentos, reagindo a eles, mas com ficção. "Reagir" parece a melhor descrição para o método. Existe um guião do filme?
Não. Foram existindo guiões diferentes. Que tinham formas muito diferentes também. Desde uma página ou duas a descrever uma série de situações possíveis, quase listagens, até histórias muito escritas. Se os actores no episódio As Lágrimas da Juíza [Vol. 2 ] mudassem frases eu normalmente dizia “corta” porque queria que eles dissessem exactamente aquilo que estava escrito. Quando trabalhámos na história do Galo [Vol. 1] não me passava pela cabeça dizer à dona do galo o que ela tinha de falar; sugeria-lhe assuntos, situações, e trabalhávamos, fazíamos vários takes.

Parece um processo anárquico, em que apesar de algumas balizas concretas, como a delimitação de uma janela temporal, tudo está em aberto. Não é perigoso filmar dessa maneira?
É um processo em que existe menos capacidade de antecipar os resultados, é esse o risco. Entre aquilo que posso ganhar com o facto de as coisas estarem menos preparadas e haver esta abertura para encontrar coisas inesperadas no plateau, e aquilo que tenho a perder em termos de segurança, vou calculando as margens de risco a cada momento: quantos dias de rodagem restam, se posso acrescentar mais alguns dias de rodagem e cortar noutro lado, caso algo corra mal... Há uma gestão que se vai fazendo.

Mas o que parece insano é que faz questão de criar constrangimentos para si próprio, de não ter controlo sobre as coisas.
Isso obriga-me a reagir às coisas e é esse movimento que para mim é importante. Nunca tive storyboards, planificações. Neste caso a coisa complicou porque há momentos em que não há argumento. E estava a fazer parcelas de um filme que não conseguia ver na totalidade. Mas não sei se consigo fazer filmes doutra maneira.

A equipa técnica e os actores profissionais estiveram de piquete durante um ano sem saber o que iam fazer. O que lhes disse?
Definimos um grupo de actores – seis homens e seis mulheres – de gerações diferentes e com registos e universos diferentes, para tentar ganhar a maior elasticidade possível. Eles sabiam que podiam nem sequer entrar no filme. Íamos trabalhar com aquilo que os jornalistas nos fossem oferecendo e portanto não podíamos antecipar isso. Eles tinham apenas de ir informando a produção dos compromissos que iam tendo. Alguns deles não entraram no filme; outros entraram várias vezes.

Tem qualquer coisa de companhia de circo este processo. Uma trupe a percorrer o país, montam e desmontam a tenda...
Sim. Por isso é que eu fujo no início. Porque obviamente no circo eu sou o palhaço. O que me interessa mesmo com este método é: qual é a maneira de ganhar a maior elasticidade possível? Ou seja, conseguir filmar bem uma manifestação de polícias e filmar uma coisa com camelos e a Rueff e o Samora? Se a estrutura for muito rígida – no funcionamento, no número de pessoas que participam – tudo isso vai ser contraproducente para rodagens muito diferentes. Sim, se calhar é isso: uma companhia de circo itinerante que está preparada para largar lastro quando tem de ser e para se reforçar quando tem de ser.

Até que ponto a crise do realizador, protagonizada por si no Volume 1, corresponde ao que se passou? Teve crises durante a rodagem?
Que me levassem à fuga não. Mas este método, de reagir a quente àquilo que íamos encontrando, chegou a um ponto quase limite que muitas vezes gerava angústias e tensões na equipa.

A sua autoinclusão no filme, chamando a atenção para a desmesura e inventividade do projecto, corre o risco de ser identificada como exibicionismo, antes mesmo do espectador entrar no filme propriamente dito.
No cinema gasta-se muito tempo a esconder a estrutura dos filmes, o dispositivo. A coisa que acho mais necessário fazer nos meus filmes é atirá-la à cara dos espectadores. Fazer com que  o espectador partilhe os dados para que ele possa fazer o caminho pelo filme. É qualquer coisa que deve surgir no início, para mim. A ideia da fuga e da equipa a procurar-me surgiu num dia em que não tinha nada para filmar. Eu ia entrevistar pessoas dos estaleiros que não podiam naquele dia. Sendo um filme sobre o trabalho, a equipa oferecia uma espécie de contraponto: os trabalhadores do estaleiro de Viana do Castelo queriam trabalhar mas não podiam porque iam perder o emprego; a minha equipa seria impossibilitada de trabalhar porque o realizador iria entrar em pânico e fugir. Nessa altura não tinha pensado nisto como um prólogo. Aliás, numa primeira versão, essa parte esteve no final do primeiro volume. O filme terminava comigo enterrado na areia a dizer: “Se me pouparem a vida, conto uma história maravilhosa”. E isso lançava o Volume 2.

A proposta do filme era retratar Portugal sob os efeitos da crise. Fixar o presente, portanto. O primeiro volume talvez seja o mais colado ao imediato, porque se ocupa do desemprego em grande parte e por causa do episódio sobre as negociações com a troika. Apesar da caricatura poder ser hoje catártica para os portugueses, o filme – falamos dos três volumes –  é maior quanto mais intemporais são as histórias.
Tem razão, há esse lado de ajuste de contas nesse episódio, Homens de Pau Feito, mas mesmo essa catarse acaba mal: termina precisamente no ponto de partida.
Mesmo as histórias que têm uma relação mais directa com acontecimentos reais, em que os intervenientes dessas histórias aparecem no filme a fazer deles próprios, deslizam para um outro território que tem a ver com ficção assumida.
Por exemplo, a história do galo condenado à morte: o galo foi um fait-divers que foi explorado pelas televisões. Nós aparecemos em último, a propor à Fernanda, dona do galo, fazer um filme. E acho que se tem a sensação, quando a Fernanda está a falar com os vizinhos, com as várias pessoas daquela comunidade, que é alguém que é um não-actor e que está a contar verdadeiramente a sua história: apareceu-lhe um polícia à porta a dizer que, por ordem judicial, ela tinha três dias para matar o galo. E depois a ficção consegue criar o clímax que na realidade não aconteceu: pode pôr o galo a falar.

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Os desempregados e a baleia: a trilogia é surreal, mas nem sempre isso se deve à ficção DR
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Um galo que fala é a mesma coisa que o realizador que foge: são tudo artifícios mas que podem contar verdades. Verdades sobre a angústia desta rodagem. Ou, no caso do galo, sobre o falhanço de diálogo. Se a personagem principal do filme também é a comunidade, a grande questão é como as pessoas se organizam dentro dessa comunidade, como é que falam, que tipo de diálogo podem ter. É preciso um galo falar para que algumas coisas fiquem claras. No segundo volume, as únicas ligações funcionais são feitas por um cão. De resto, é tudo bastante disfuncional.

Num episódio filma a manifestação dos polícias na Assembleia da República, imagens que toda a gente viu. Mas sobrepõe a essas imagens uma narração em voz-off de uma imigrante chinesa, que é uma história inventada. A única forma de desfamiliarizar, de descontaminar o espectador em relação àquilo que ele julga reconhecer do real é introduzir a ficção?
Exactamente. Nesse caso, interessava-me trabalhar a relação entre o público e o íntimo. Que nesse episódio é levada a um extremo. É quase só homens que se vê, cada plano tem milhares de polícias e há um contraste enorme com a voz daquela chinesa que fala baixinho e que conta coisas muito privadas – e que vem de facto da ficção, apesar de estar contaminada por coisas concretas.

O Banho dos Magníficos é para mim um episódio muito importante por causa dessa relação entre o individual e o colectivo. Aquele sindicalista [Adriano Luz] está obcecado em fazer um ritual com toda a gente e poder levá-los no dia 1 de Janeiro a entrar no mar... Normalmente as obsessões são individuais, não é? Mas depois chegamos àquele final onde os Magníficos desaparecem e ficamos com uma multidão a segurar a bandeira de Portugal. Ao longo do filme vamos conhecendo personagens solitários, bastante excêntricos, mas nessa excentricidade há uma afirmação e uma individualidade que depois estabelece relações com o colectivo. Por isso é que para mim foi tão importante terminar com aquela comunidade de pessoas tão obsessivas que são os passarinheiros. A ocupação deles é singular, formam uma espécie de sociedade secreta com rituais próprios. Ao mesmo tempo, pertencem a um grupo maior que é o proletariado na região de Lisboa. Isso permitiu-me entrar num mundo marginal, quase paralelo àquilo que é a organização da sociedade dominante onde estamos todos, e ao mesmo tempo fazer um retrato de uma classe social. Sem dificuldade: apenas apontando a câmara, entrando nas casas deles, vendo-os a tratar dos tentilhões.

É se calhar o episódio mais documental, onde o artifício se intromete menos, não?
Ao filmar alguém que trabalhava no computador para recriar cantos de pássaros ou filmar alguém numa casa onde em cada compartimento existem dez pássaros e portanto é uma chinfrineira enorme, senti estava a filmar uma coisa que não é aquilo que nós tomamos por realidade. E que essa dimensão surreal estava inserida de uma forma tranquila dentro da realidade. Se será o mais documental? É aquele em que faço menos para poder ter o lado do imaginário e o lado paralelo de realidade porque ele já está lá... Decidi fazer esse filme no dia em que vi no YouTube um concurso com aqueles tipos, muitos deles com um ar bastante duro, de minis na mão e em silêncio total; a única coisa que se escutava eram os aviões que passavam e o canto dos pássaros. Isso tocou-me muito. Senti esse lado maravilhoso – “coisas de pasmar”, como diz a Xerazade ao rei – na diferença que existia entre aquilo que é habitual esperarmos daqueles corpos e aquilo que se passava.

Um contraste entre uma experiência de vida dura e algo delicado.
Esse contraste existia já, era só pôr a câmara e filmá-los.

Chegamos a esse episódio depois de um Volume 2 muito negro, que basicamente diz: não há mais nada, batemos no fundo. Há qualquer coisa de redentor, de resiliência, nestes homens que criam passarinhos.
Há um problema em muitos dos filmes que querem ter uma atitude de intervenção política,  e que trabalham com classes sociais desfavorecidas, em que existe um caminho a seguir que está muito desenhado, um caminho para o progresso. O facto de estas pessoas existirem num universo paralelo acaba por oferecer uma espécie de resistência poética ao modelo de sociedade dominante. Mesmo que não estejam a fazer grande coisa para mudar as suas condições de vida, e não sejam politicamente activos, aquela comunidade tem um lado político por se oferecer como alternativa.

O que é que descobriu sobre Portugal ao fazer o filme?
Não consigo reduzir as coisas a uma fórmula. Talvez por causa do meu gosto pelos paradoxos, acho que quando filmo algo estão lá sempre duas coisas opostas. Está lá uma ferocidade enorme e ao mesmo tempo uma nostalgia quase passiva de quem já não pode fazer nada. E uma não exclui a outra. Tentei que as histórias das Mil e Uma Noites fossem mudando a imagem que tinha ficado da anterior e dentro de cada segmento há sentimentos muito contrários. Sou incapaz de tirar uma síntese em que as coisas sejam inequívocas.

O seu olhar mudou depois de fazer o filme?
Não no sentido em que o filme me transformou. Tenho a sensação de que este filme foi suficientemente longo para que houvesse coisas que fossem mudando. Às vezes estava mais enfurecido com as coisas que ouvia e reagia de forma mais violenta, outras vezes de uma forma mais conformada, mais desiludida, com a impressão de que havia pouco a fazer. É quase como mudar de humor.

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