Ó Evaristo, temos cá lixo

A ausência de memória tem consequências sobre a ternura, sobre os sentimentos, sobre as ideias: não os há, não há nada disso em O Pátio das Cantigas, o remake.

1942? É o ano de Ser ou Não Ser, de Ernst Lubitsch, de Lua sem Mel, de Leo McCarey, de The Palm Beach Story, de Preston Sturges... 1942 é o ano de O Pátio das Cantigas, de Francisco Ribeiro.

Pode ser injusto, porque é uma comparação curta e grossa, mas eis então a “idade de ouro” da comédia à portuguesa: cinema do pátio, fechado no provincianismo, com medo, a tentar remediar-se com a propaganda, pendurando bandeirinhas típicas de um país de papelão que décadas depois se declararia orgulhosamente só.

2015? É o ano de O Pátio das Cantigas, remake de Leonel Vieira. Setenta anos depois, há quem continue a falar na “idade de ouro”, por ingenuidade ou porque dá jeito – é que não houve blockbusters, isso é lenda que à força de ter sido repetida ficou impressa, como se dizia naquele outro filme, é a nossa nostalgia de um futuro que nunca aconteceu a tomar conta. Nada contra os mitos, nem mesmo os de pés de barro, mas é inquietante esta admiração confessada por um “cinema” que na realidade nunca o foi – isto é, cinema; era sobretudo teatro, era muito revista –, esta simpatia sem antivírus que ponha em guarda perante o que se escondia ideologicamente por trás do amável retrato de um país de opereta.

Mas o que interessa é o que se faz com eles, com os mitos. E 70 anos depois o que se faz? Lisboa continua a ser um pátio, Portugal pendura bandeirinhas típicas de um cinema de papelão irremediavelmente só, por mais golfadas de 100 mil de nós, portugueses, expelidas todas as semanas nas salas de cinema onde está em exibição o filme de Leonel Vieira.

Igual? Pior. É que sempre se pode encontrar no pátio de Francisco Ribeiro um amor - é excessivo dizê-lo assim, ternura talvez – pelas personagens; sempre se pode detectar um ideário a agitar-se, uma mistificação que seja, alguma coisa em construção, enfim. E um gosto pelos actores: Vasco Santana, António Silva (o Evaristo), Laura Alves... Sim, Miguel Guilherme (o Evaristo), César Mourão, Rui Unas, Dânia Neto, Sara Matos, Anabela Moreira: este Pátio das Cantigas não gosta de vocês, apenas vos utiliza, não vos dá personagens, apenas vos atira bonecos... Por isso uns gritam até à rouquidão para tentarem ter graça, outros só a espaços conseguem que se vislumbre a imitação que puseram como objectivo. Talvez só Anabela Moreira olhe para dentro, para tentar encontrar com silêncio qualquer coisa próxima de uma personagem.

O mais deprimente disto é ver como tamanha mobilização não consegue, pelos vistos e até ver – anuncia-se o remake de O Leão da Estrela (1947), de Arhur Duarte, depois A Canção de Lisboa (1933), de Cotinelli Telmo –, balbuciar a palavra “cinema”. Como se isto que se vê no ecrã, e que é produzido em nome de um passado supostamente glorioso, não conseguisse, afinal, ter memória – de planos, de sequências, enfim, “coisas” que foram arrasadas por uma catástrofe publicitária, audiovisual. A ausência de memória tem consequências sobre a ternura, sobre os sentimentos, sobre as ideias: não os há, não há nada disso em O Pátio das Cantigas, o remake. O que é um passo estreito para o filme denunciar involuntariamente a sua intolerância, apesar do tom “típico”: junta, tudo ao molho, tuk tuks, Bollywood em Lisboa, gays, sem compreender nada, sem querer saber nada (da cidade), olhando à distância, coleccionando o exótico, incapaz de afecto, apenas aproveitando o espectáculo da caricatura. É o ponto de vista do telemóvel.

Há uma semana, Luís Miguel Oliveira escrevia aqui: “Só há uma coisa positiva a dizer do filme, que revela inteligência por, obviamente, ser deliberada: nunca se ouve dizer a mais famosa tirada do original, ‘ó Evaristo, tens cá disto?’”. É verdade. Mas seria mais “cinema verité” se alguém ali dissesse: “Ó Evaristo, temos cá lixo”.

 

Crítico de cinema

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