“As questões unem-nos, as respostas dividem-nos”

Derek B. Miller escreveu um romance onde há um crime mas os grandes temas são o patriotismo, a identidade e a memória. Os judeus, a América e a terra dos vikings.

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Derek B. Miller Nuno Ferreira Santos

Uma das cenas mais fortes do romance Um estranho lugar para morrer, do norte-americano Derek B. Miller (ed. Asa) acontece quando a personagem principal, Sheldon - um judeu norte-americano de 82 anos, ex-veterano da Guerra da Coreia que depois de ficar viúvo vai viver para casa da filha, em Oslo, depois de mostrar sinais de demência -, disfarça um menino albanês, que ele tenta salvar, vestindo-o como um viking. Põe-lhe uma colher de pau à cintura, enfia-lhe um gorro com cornos e uma cabeleira loira e, por fim, desenha-lhe uma estrela amarela no peito.

Quando perguntámos a Derek B. Miller, escritor premiado, doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra, membro do Instituto das Nações Unidas de Pesquisa para o desarmamento (onde trabalhou dez anos) e director fo Policy Lab, um instituto internacional de ‘design político’, que ajuda organizações a conseguirem um maior impacto social através do design, se esta estranha imagem também é para ele a mais marcante do livro ele responde: “É realmente uma imagem impossível, difícil de acontecer. Achei divertido”.

Muitas vezes, divagou imaginando que na história europeia talvez tivesse existido um momento em que os judeus e os vikings se tivessem encontrado no mesmo lugar. “O meu filho é um judeu-viking por isso tive de inventar um no livro. Também é verdade que tem mais graça ser viking do que judeu…”, acrescenta, a rir-se. Na sua fuga no livro, o velho judeu e a criança fantasiada são parados por um polícia norueguês a quem o judeu baralha respondendo em iídiche. “O velho Sheldon fala em língua iídiche e o polícia norueguês acha que é alemão. Há humor negro nisso, no sentido de que está a falar uma língua que nem sequer pode ser reconhecida pelos outros. Há uma tristeza e uma acusação e, ao mesmo tempo, o facto de a língua que ele está a falar estar tão morta que nem sequer pode ser identificada é uma piada privada de Shelton”, explica sentado num hotel de Lisboa o escritor, que com este seu livro recebeu o prémio John Creasey Dagger da Crime Writers Association.

Quando lhe perguntámos se as novas gerações têm quotidianamente de viver com o peso do Holocausto, Derek Miller responde: “Se a sua avó e a sua mãe tiveram cancro da mama você não sabe se vai ter cancro da mama mas há sempre esse medo: o que o causou? Se não entendermos a causa de alguma coisa não sabemos se estamos fora de perigo. É lógico. A Alemanha não era só anti-semita, a Alemanha foi fundamental para o desenvolvimento da civilização ocidental – desde a pintura, à música, ao desenvolvimento científico - por isso é tão incompreensível que tal coisa tivesse acontecido”

“Não é razão suficiente dizer-se que a Alemanha ficou pobre a seguir à guerra ou que o acordo de paz de 1919 não era suficiente bom, blá,blá,blá... Estas não são as respostas para que se exterminem pessoas. É o mesmo que dizer que o desemprego em Londres é a razão para que alguém se vá alistar no Exército Islâmico e comece a matar crianças. Não é a resposta certa. Não se pode dizer que se trabalhasse no Harrods talvez não fosse matar pessoas. Quanto tempo as pessoas precisam de estar desempregadas para começarem a matar outras? Um mês, seis meses, nove meses...? Isso é uma treta, não é assim que acontece. Realmente nós não percebemos porque acontece”, afirma o escritor.

 Por um lado a Europa quer lembrar-se de que o Holocausto existiu mas por outro também quer esquecer. “Quanto tempo irá este trauma durar? Quanto tempo deverá durar? Não sei. Não sabemos, é um território novo para todos. Mas é nossa obrigação moral falar sobre isto, não de uma maneira acusatória, sem culpas, mas a trabalharmos juntos para termos uma resposta a estas perguntas, pela saúde da nossa civilização. Não é uma neurose judia, acredito mesmo que a cultura judia pode ajudar a Europa a lembrar-se e a pôr-se em questão. Porque mais do que testemunhas, temos de ser guias. Há um ditado judeu que diz: ‘as questões unem-nos, as respostas dividem-nos’. Precisamos de abraçar estas questões como se fossem nossas.”

 
67 anos depois

Tal como a sua personagem Derek B. Miller, 43 anos, é um norte-americano a viver em Oslo. Pelo romance, que no original se intitula Norwegian by Night, passa a experiência de se ser judeu num país como a Noruega onde o governo, só em 2012, sessenta e sete anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, apresentou um pedido oficial de desculpas ao povo judeu pelos seus actos durante a Ocupação. Miller sabia alguma coisa sobre o que tinha acontecido durante a II Guerra Mundial naquele país mas não com muitos detalhes.

“Sabia obviamente da Ocupação alemã, sabia que a comunidade judia tinha sofrido mas além disso não sabia muito. As respostas da Dinamarca, Suécia e Noruega foram muito diferentes durante a guerra por uma série de razões mas a verdadeira razão, para responder à sua pergunta sobre a necessidade de falar sobre isso no livro, foi porque o meu filho mais velho nasceu. Sou judeu, a minha mulher é norueguesa e o que é este lugar? Onde há tão poucas pessoas com identidade norueguesa e judia? Queria dar algum sentido, saber que mundo é esse, para os meus filhos também, é uma questão de sabermos quem somos.”

Pelo romance, que tem por base um assassinato numa comunidade de imigrantes a ser resolvido por uma mulher polícia, passa também a ideia de que os noruegueses são muito ignorantes quanto à cultura judaica. “Não é ignorância, talvez seja ingenuidade, mas não é nada deliberado. É verdade que eu estava interessado no assunto por razões pessoais - por causa do meu filho, porque estava a viver lá e estava curioso – mas também me pareceu importante falar nisso porque não é uma coisa que apareça nas conversas. Os noruegueses não pensam muito nisso, só pediram desculpa ao povo judeu pelos seus actos de deportação durante a Ocupação em 2012, sessenta e sete anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Criaram um Museu do Holocausto que é também um centro de estudos, em Oslo, que faz investigação não só sobre a comunidade judia mas também sobre temas relacionados sobre o genocídio em geral e que eu acho que é muito bom, poucos anos antes” (em 2006).

Por exemplo, acrescenta Derek, há uma diferença entre dizer que perto de 800 judeus morreram por causa da deportação durante a Ocupaçãosoa a uma coisa, ou se se disser que 800 noruegueses foram mandados para as câmaras de gás, isso soa a outra coisa muito diferente. “Só esse facto é já de si interessante. Porque estes judeus eram noruegueses, falavam norueguês, frequentavam escolas norueguesas. Há aqui uma noção de identidade.”

Com diversos tradutores, Derek chegou a discutir a melhor forma de traduzir o que escreveu no original inglês: “noruegueses, que eram judeus” como oposição a “judeus noruegueses”. Por que o que modifica o quê? “Estas eram coisas que queria perceber, mas o grande tema do livro é que a personagem é um velho judeu americano de 82 anos. Um homem que era demasiado novo para lutar na Segunda Guerra Mundial, que soube do Holocausto como todos nós depois de ele ter acontecido, e que vai precipitar-se para a Guerra da Coreia cinco anos mais tarde.”

Na América, lembra Derek Miller, não havia a percepção de que os judeus norte-americanos fossem sobreviventes de nada ou que a América os tivesse salvo. Durante a Segunda Guerra Mundial os judeus eram vítimas na Europa. “Sheldon pertencendo a essa geração iria para a Noruega e sentir-se-ia um extraterrestre. Não quer isto dizer que as suas interpretações sejam certas ou que não sejam injustas mas são realistas em relação ao seu ponto de vista e à personagem que ele é”, explica o escritor para quem Sheldon é um tipo de personagem que ele ainda não tinha visto na ficção. “Não sei por que é que não há mais personagens velhos, se calhar porque não fazem muito sexo, mas temos sempre a sua experiência, a sua perspectiva, que tipo de nova vida uma pessoa arranja para si própria aos oitenta e tal anos.... O que significa uma pessoa dessa idade mudar-se para um outro país onde não só não sabe falar a língua, como não pode conhecer o país nem o país o pode conhecer... Mesmo que se apaixone pelo país, não será correspondido. Isso pareceu-me ser dramaticamente interessante.”

 
A tribo norueguesa

Na América, acrescenta o escritor norte-americano, o que nos faz ser genuinamente diferentes é que ninguém pertence lá, somos todos imigrantes. “Até a organização racista mais horrorosa, como o Ku Klux Klan, não diz que os judeus e os negros não são americanos, só desejariam que não o fossem. Esta noção de identidade é muito diferente da experiência europeia, em que perguntamos: ‘Eles são mesmo franceses? São mesmo italianos? Claro que têm passaporte italiano mas não são mesmo italianos’. É um pouco como perguntar quão português podemos ser se não formos católicos. Não estou a falar dos ateus, os que têm um background católico que rejeitam, isso é uma posição política, isso encaixa-se, mas é diferente de vir da Serra Leoa e ter chegado aqui ou mesmo ter já nascido aqui com raízes lá.”

Derek considera que a imigração “quer seja tratada como boa ou má, quer seja resolvida bem ou mal",  é um "dos grandes temas a enfrentar na Europa. Podemos dizer que politicamente à direita – na Áustria, França, Holanda, Noruega, Suécia - há muita xenofobia e racismo e que à esquerda há uma espécie de negação – 'está tudo bem, somos todos iguais, o que se passa com vocês, somos uma enorme família feliz'. Na realidade, as nossas sociedades estão a mudar e essa mudança é assustadora. Não estou a dizer que é boa ou que é má, é ambas as coisas, algumas coisas vão ser destruídas outras vão ser criadas, porque é assim que as mudanças ocorrem.”

“O que está a acontecer em Oslo é que os emigrantes se estão a juntar nos mesmos bairros. Claro que as pessoas devem poder escolher o sítio onde querem viver, mas não gostaria de ver acontecer em Oslo o que já aconteceu em Paris, com os motins por causa da marginalização dos imigrantes e não estamos a falar daqueles que se mudaram para França e se naturalizaram mas daqueles que já nasceram lá.”

Na Noruega, “a imigração está a mudar aquela que era realmente uma sociedade à margem em que todos eram luteranos, brancos, loiros e altos, como se fossem uma tribo. Eles pensam que são um país mas são uma tribo. Sempre foram uma parte estranha da Europa – à parte do império romano, à parte do império romano germânico - como se estivessem num outro planeta e agora têm a emigração de países muito distantes como a Somália e o Paquistão. E estão a tentar ser abertos, liberais e felizes e adaptarem-se mas acho que ainda estão a aprender não sabem bem o que isso significa, não são sociedades como a dos Estados Unidos. Acho que a imigração e a identidade, a pergunta quem somos nós, é um dos grandes temas na Europa deste século XXI.”


Notícia corrigida às 19h23: foram 800 os judeus deportados da Noruega durante a Ocupação e não 800 mil como se escreveu por engano.  

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