Amazon e Hachette arrastam leitores e George Orwell para a sua batalha

Emails dos CEO foram divulgados e trocam-se galhardetes na Internet, revelando-se mais peças do puzzle deste diferendo sobre ebooks. O autor de 1984 é citado pela Amazon e isso só lhe gerou mais problemas.

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Jeff Bezos, CEO da Amazon Shannon Stapleton/reuters

É mais um capítulo da história de uma disputa em torno de livros e suas vendas: a querela entre a Amazon e a Hachette dura há cerca de quatro meses e agora, depois de uma carta de apoio à editora subscrita por mais de 900 escritores ter sido publicada no New York Times, a Amazon reagiu através de um post em que cita parcialmente George Orwell e que está a gerar-lhe mais críticas. Entretanto, a troca de galhardetes acaba por revelar mais peças do puzzle desta luta sobre o mercado editorial digital.

O autor de 1984 é invocado para corroborar o argumento do gigante das vendas online de que o advento dos livros de bolso (ou paperback, em inglês) é similar à força dos livros electrónicos e que não deve haver reservas quanto às mudanças que estas novidades imprimem ao mercado. Mas o post publicado no site readersunited.com (sendo que o movimento dos escritores é o Authors United e tem um respectivo e homónimo site) abre o flanco ao citar apenas parcialmente Orwell e talvez inquinando o sentido original das declarações do escritor britânico sobre os livros brochados.

A missiva que quer resumir-se na frase “Queremos preços de ebooks mais baixos. A Hachette não” começa com um recuo aos anos 1930 e à “invenção radical que abalou as fundações da edição de livros. Era o livro de bolso”, que a carta sublinha ser “dez vezes mais barato” do que um livro de capa dura - e que esperava que “o establishment literário da época teria celebrado”, o que não aconteceu. “Acreditaram que os livros de bolso de baixo custo iam destruir a cultura literária e prejudicar a indústria (para não falar das suas contas bancárias)”. É aí que George Orwell é citado, como tendo dito sobre o novo formato que “se os editores tivessem alguma sensatez, juntar-se-iam contra eles e suprimi-los-iam”, acrescentando a carta que Orwell estava a sugerir “conspiração” para limitar a concorrência. E rematam dizendo que “resistir à mudança pode ser um instinto reflexo” e que Orwell estava “errado” no seu interesse em “suprimir os livros de bolso”.

Mas Orwell não disse apenas “se os editores tivessem alguma sensatez, juntar-se-iam contra eles e suprimi-los-iam”. A frase completa do autor de Triunfo dos Porcos não permite tirar a ilação de que o britânico advogava o fim dos paperbacks. Vários sites assinalaram que, ao ler-se a frase completa, o escritor queria dizer exactamente o contrário – “Os livros Penguin são de esplêndido valor por seis centavos, tão esplêndido que se os outros se os editores tivessem alguma sensatez, juntar-se-iam contra eles e suprimi-los-iam”. Ou seja, um apoio aos paperbacks. É a opinião do TechCrunch ou do New York Times. Mas a própria Penguin, como nota o diário britânico Guardian, abre uma nova porta de incerteza, dizendo que tal como os editores tradicionais tendiam a suspeitar da editora precursora no negócio dos livros de bolso, “também alguns autores” eram cépticos em relação a estes pequenos livros de baixo preço.

A Amazon faz “fast forward para hoje" e compara o advento do paperback ao do ebook, dizendo que “é a vez do livro electrónico ser vítima de oposição por parte do establishment literário”, lembrando que a Hachette fez parte, com os restantes membros das Big Five (as grandes casas editoriais com base em Nova Iorque), da tentativa de aplicar o modelo de agência, em que são as editoras que fixam os preços, para os livros electrónicos nos EUA, tendo sido considerada culpada pela Justiça americana de conspiração e cartelização.

O anúncio dos Authors United reúne Pulitzers, campeões de vendas e nomes conhecidos como os de Michael Chabon, Malcolm Gladwell, Joshua Ferris, Jennifer Egan, Paul Auster, Jonathan Littell, romancistas cujo trabalho é ou foi alimento televisivo como John Grisham, Tom Perrotta ou George Pelecanos, além de matemáticos e autores como Ian Stewart ou jornalistas e críticos como Kenneth Turan. Numa guerra que só chegou ao grande público quando a Amazon começou a bloquear as vendas de títulos da Hachette e quando o humorista Stephen Colbert (editado pela Hachette) lançou uma campanha que envolvia autocolantes nos livros que indicassem que não foram comprados na Amazon, a querela passou agora à fase da correspondência.

A Hachette apela que quem os apoia nesta difusa causa - em que se pensa que as partes se digladiam em torno das margens de lucro na venda de ebooks, estimando-se que se trate de uma passagem de 30 para 50% de receitas para a Amazon - mande emails a Jeff Bezos, o CEO da Amazon. Ora a Amazon Books Team, que surge como única subscritora da carta publicada no Readers United, pede que sejam enviados emails ao CEO da Hachette, Michael Pietsch, em defesa dos livros electrónicos mais baratos. Ambas as missivas fornecem as moradas de correio electrónico dos dois poderosos.

A troca de correspondência forçada dos CEO com os leitores das várias facções (embora não se saiba como Bezos estará a reagir aos mails) fez com que Pietsch frisasse na sua resposta comum a esses emails que mais de 80% dos seus ebooks custam 9,99 dólares ou menos. E detalha que “a disputa começou porque a Amazon procura muito mais lucro e uma quota de mercado maior à custa dos autores, das livrarias e à nossa custa”. Por seu turno, a Amazon Book Team diz que a Hachette “passou três meses a obstruir” as negociações e que só quando a Amazon começou a não encomendar mais títulos seus e a demorar as suas vendas é que ouviu os seus pedidos, dizendo a empresa de Bezos que já pediu três vezes à editora que não use os seus escritores como armas de arremesso com soluções para que estes não fiquem financeiramente prejudicados neste braço de ferro, que terão sido recusadas. “Nunca desistiremos da nossa luta por preços razoáveis nos ebooks”, postula a carta atribuída à Amazon.

Entretanto, e além da querela com a Hachette e respectivas e inusuais discussões públicas entre grandes empresas durante processos negociais, a Amazon parece também estar em diferendo com a Disney: interrompeu as encomendas de filmes do estúdio, incluindo títulos populares como o recente Maléfica, como noticiou o Wall Street Journal. A Amazon ainda não reagiu a este caso mas estima-se que esteja em causa mais uma negociação, desta feita em torno dos preços de venda de DVD e Blu-ray, como escreve a Bloomberg – que chama a atenção para o facto de a Amazon estar sob pressão dos seus investidores para reduzir custos e aumentar margens de lucro.

A Amazon controla 60% do mercado de livros electrónicos dos EUA segundo os analistas de mercado da Forrester Research e cerca de 40% de todos os novos livros vendidos nos Estados Unidos o serem através da Amazon, de acordo com o New York Times. Esta querela afecta apenas o mercado dos EUA – sendo que os consumidores estrangeiros podem também fazer compras na Amazon americana – mas está a ser observada atentamente como um indicador de como se poderá delinear a estrutura do mercado digital livreiro no futuro próximo.

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