A União Negra das Artes vem a Terreiro combater o racismo que “continua em curso”

Encontro que decorre este fim-de-semana no Espaço Alkantara, em Lisboa, quer empoderar os profissionais anti-racistas do sector cultural português e promover a diversidade nos lugares de decisão.

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Roda do Terreiro, uma organização da União Negra das Artes Dori Nigro (DR)

A União Negra das Artes (UNA) organiza este fim-de-semana, em colaboração com o Espaço Alkantara, em Lisboa, o ciclo de formações Terreiro, com vista a "promover a interacção, o diálogo e a partilha de conhecimentos, fortalecendo os laços na comunidade artística negra em Portugal e profissionais anti-racistas do sector cultural português, através de formações e conversas".

A artista visual e poeta e performer Raquel Lima, uma das fundadoras da UNA, sublinha que o mundo artístico em Portugal é racista e que a discriminação é mais flagrante nos lugares de decisão, como a programação cultural, a curadoria ou a direcção artística. O evento quer contribuir para mudar esse panorama.

"Com uma diáspora tão grande, uma influência negra que vai do fado a outras artes, que faz parte da identidade nacional do país, parece-nos muito evidente que há aqui uma falha e um racismo que continua em curso", considera. E adiantou: "Em disciplinas como a dança, o teatro ou as artes performativas ou audiovisuais preocupa-nos muito a questão de quem controla os lugares de decisão."

Para Raquel Lima, o racismo no sector das artes "tem a ver com poder". "Há muito poucas pessoas negras a fazer programação cultural, a fazer curadoria, a fazer encenação ou direcção artística", observou a artista, uma das duas presenças portuguesas (a outra é Carlos Bunga, também afrodescendente) na Bienal de São Paulo deste ano.

E recordou que a associação cultural UNA nasceu precisamente num "contexto anti-racista" e "após observar uma série de assimetrias, não só em relação à atribuição do financiamento público para as artes", mas também perante "uma certa valorização de narrativas que não contemplavam a experiência e as referências associadas às culturas negras".

Apesar das percepções de quem vivencia estas situações, "é muito difícil fazer uma monitorização do racismo no sector artístico, porque não há dados étnico raciais" que ajudem a fundamentar essas observações.

Esse levantamento acaba por ser feito através da partilha de situações e das denúncias que chegam à UNA, como a recente censura da obra dos artistas brasileiros Dori Nigro e Paulo Pinto, cuja obra Adoçar a Alma para o Inferno III, com alusões ao passado esclavagista do conde de Ferreira, foi amputada na Bienal de Fotografia do Porto.

Para colmatar a ausência de dados, a UNA está a promover um "auto-mapeamento", que permitirá perceber o papel e a presença da negritude na cultura em Portugal.

Ana Tica, produtora, agente cultural e membro da UNA, disse à Lusa que este projecto é muito "agregador".

"Numa primeira fase, avançou, estão a ser recolhidos dados para criar uma montra com informação sobre artistas, profissionais negros das artes em Portugal". "Quem somos e o que fazemos" é a pergunta a que esta recolha de informações deverá dar resposta.

O objectivo é preencher o vazio de informação oficial nesta área. "Queremos ter dados que sustentem esta percepção que nós vivemos, mas que não deixa de ser uma percepção, porque não houve autorização para a recolha de dados étnico-raciais em Portugal e, a nível sectorial, ainda não é possível comprovar situações que vamos sentindo no dia-a-dia e que partilhamos entre nós."

A associação consulta ainda arquivos de história contemporânea e currículos escolares do ensino básico, nos quais identifica "uma grande ausência de referências de docentes das comunidades negras", diz Raquel Lima.

"No fundo, tem que ver com continuidades históricas do colonialismo, uma construção da pessoa negra como inferior, pouco profissional ou pouco capaz de criar. Há uma infantilização generalizada, que tem a ver com o negacionismo geral que o próprio país tem em relação à sua história colonial", afirma.

Raquel Lima identifica alguns avanços, como no discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que actualmente reconhece massacres, o colonialismo e a escravatura, quando no passado chegou a dizer que o colonialismo até foi suave. Ainda assim, a mudança precisa de passar para as acções, diz.

Na opinião desta artista, uma das medidas reparadoras poderia passar pela criação de bolsas especiais para artistas emergentes das comunidades negras.

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