INE chumba pergunta sobre origem étnico-racial no censos

Instituto Nacional de Estatística anunciou decisão no final da tarde desta segunda-feira em conferência de imprensa. Em Abril, Grupo de Trabalho formado pelo Governo tinha recomendado a pergunta. INE garantiu que vai fazer inquérito para conhecer discriminação e desigualdades mas não se comprometeu com datas.

Foto
Ricardo Campos

O próximo censos, em 2021, não vai incluir uma pergunta sobre a origem étnico-racial da população. A decisão de chumbo foi anunciada na tarde desta segunda-feira pelo presidente do Instituto Nacional de Estatística (INE). Resultou de um processo de consulta de meses no qual se inclui a recomendação de a introduzir feita por um Grupo de Trabalho criado pelo Governo.

Francisco Lima fez questão de comunicar a decisão aos jornalistas em conferência de imprensa, na qual estiveram presentes Paula Paulino, coordenadora do gabinete do Censos, e Maria João Zilhão, vogal do conselho directivo. O chumbo deve-se ao facto da questão ser complexa, referiu, adiantando que se fará um inquérito em que serão abordadas questões para “melhor conhecer a discriminação e desigualdade na sociedade portuguesa”. Mas não se comprometeu com datas. Possivelmente, no segundo semestre de 2021, disse.

O presidente do INE usou vários argumentos apresentados pelo núcleo do GT que se opôs à inclusão desta pergunta no censos. Disse que, ao fazê-lo, se corria o risco de institucionalizar as categorias étnico-raciais e legitimar a classificação das pessoas. Sublinhou que, para se incluir esta questão no Censos 2021, seria necessário ter começado este trabalho em 2015. Trata-se de questões complexas que exigem processos longos, tal como aconteceu em outros países, argumentou. 

Disse também que o facto de a pergunta ser facultativa gerava incerteza sobre os resultados. Explicou que o tipo de informação sobre a discriminação não seria possível de obter no censos, que não questiona os rendimentos dos inquiridos, e que um inquérito cumpriria melhor esta função de modo a captar a sua “multidimensionalidade” e fazer a sua monotorização ao longo do tempo.

Será feito um teste-piloto do inquérito depois de serem consultados vários agentes da academia aos intervenientes políticos, explicou. “Precisamos desta informação”, afirmou, o “inquérito está na nossa agenda”, garantiu.

Horas antes, o INE reuniu-se com alguns membros do Grupo de Trabalho (GT), os sociólogos Rui Pena Pires e Cristina Roldão, e com o seu coordenador, o Alto-Comissário para as Migrações (ACM) Pedro Calado. 

“Mesmos de sempre” decidiram, critica socióloga

Esta era uma reivindicação antiga de activistas anti-racistas que há anos chamam a atenção para esta necessidade — em linha com uma recomendação feita por várias vezes a Portugal pela ONU.

A decisão foi criticada pela socióloga Cristina Roldão. Com esta decisão “continuaremos a não reconhecer que Portugal tem muitas cores e que o racismo –individual, institucional e estrutural – existe”, disse em declarações ao PÚBLICO.

Acrescentou ainda que “a posição favorável que ficou expressa nas recomendações do GT, assim como a demonstração de adesão das cerca de 1500 pessoas inquiridas numa sondagem recente, ou ainda os resultados positivos em dois Eurobarómetros (2006 e 2015)” não foram motivo “suficiente para levar o status quo e as instituições a dar este passo histórico no combate ao racismo e desigualdades étnico-raciais”.

Criticou a “falta de investimento político”. “Ao longo destes meses não foi dado qualquer passo para alargar o debate à sociedade portuguesa e criar assim uma decisão mais participada e reflectida. Esta tarde, no salão nobre do INE, não havia nenhum negro ou cigano com poder de decisão, é gritante a ausência de representatividade étnico-racial. Hoje, os mesmos de sempre decidiram que os mesmos do costume devem continuar a esperar e invisíveis.”

Para Rui Pena Pires, um dos opositores, a decisão do INE foi de encontro ao que “era mais sensato”. Mas o sociólogo deixou um recado: “Espero que não inviabilize a produção de informação necessária para sustentar o desenho e monotorização de políticas públicas anti-racistas. O problema existe e a minha discordância era apenas sobre o modo de recolher a informação. Farei tudo para que as soluções que não o censos se concretizem”, comentou.  

Em Abril, e depois de meses de reuniões em sequência do anúncio dessa intenção em Setembro de 2017 pelo então ministro adjunto Eduardo Cabrita, aquele Grupo de Trabalho recomendou ao Conselho Superior de Estatística a introdução de uma pergunta sobre a origem étnico-racial dos cidadãos, questionando-os se pertencem a quatro grandes grupos, que depois se dividem em subgrupos: branco, negro, cigano ou asiático. Na altura, nove elementos votaram a favor, quatro contra e um absteve-se. A decisão causou polémica: o representante das comunidades ciganas, Almerindo Lima, e a coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas (integrado no Alto Comissariado para as Migrações), Maria José Casa-Nova, votaram contra. 

Também um comunicado com duas dezenas de subscritores ciganos, entre associações como a Letras Nómadas e Associação Cigana de Coimbra e activistas, manifestou o desacordo com a pergunta, pedindo que “essas questões sejam relativas à nacionalidade e à ascendência e não à pertença ‘étnico-racial’, que tenderá a exacerbar o estigma que pesa sobre a população cigana portuguesa”.

Esta tomada de posição serviu de exemplo a Francisco Lima para explicar por que o tema é controverso e necessita de outras abordagens. 

Defensores: instrumento “incomparável"

A recolha não era feita até agora porque entidades como o ACM alegavam que essa prática é contra a Constituição. Mas a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) pode dar autorização em determinados casos — segundo o parecer do INE, apesar de se tratar de dados sensíveis, existe a possibilidade de recolha e tratamento, desde que estejam garantidas determinadas condições como o anonimato.

Os elementos a favor do GT defenderam, na altura, que a resposta do censos será um instrumento “fundamental e incomparável” para avaliar as desigualdades étnico-raciais no país: porque tem uma cobertura nacional; pelo universo da população; pela sua multisectorialidade; pelo carácter sistemático e longitudinal da recolha; pelo rigor dos protocolos pelos quais se recolhe e trata os dados, entre outros. 

Um dos instrumentos decisivos na decisão do GT foi uma sondagem elaborada pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica em que se concluiu que a esmagadora maioria da população inquirida, 84%, responderiam a uma pergunta no censos sobre a sua origem ou pertença “étnico-racial”, se lhe fosse garantido o anonimato, e 80% concordava com a pergunta. Também a maioria, 78%, achava relevante obter informação estatística oficial para conhecer a discriminação e as desigualdades baseadas em “raça” ou “etnia” em Portugal.  

Quem se opôs à decisão — os sociólogos Rui Pena Pires e João Peixoto, Almerindo Lima, representante das comunidades ciganas, e Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, integrado no ACM — considerou que a recolha destes dados pode promover a legitimação das categorias raciais, e os seus efeitos são “maiores” quando o Estado é o autor. Os riscos são também maiores, argumentam, quando há um recenseamento geral do que quando é feita uma recolha por investigadores ou num inquérito, escrevem no relatório. 

Formalizado por decreto regulamentar em Agosto de 2018, o GT foi criado pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade e era composto ainda por académicos como Cristina Roldão, Marta Araújo, Jorge Malheiros e Jorge Vala, pelo ACM, por representantes das comunidades afrodescendentes, como Anabela Rodrigues e José Semedo Fernandes, pelo SOS Racismo e pelo gabinete do Censos no INE, entre outros.

"Pessoas de diversas origens"

Na pergunta recomendada pelo GT há um enunciado em que se afirma que a resposta é facultativa: “Portugal é hoje uma sociedade com pessoas de diversas origens. Queremos melhorar a informação sobre essa diversidade para melhor conhecer a discriminação e desigualdades na sociedade portuguesa.” Depois inquire: “Qual ou quais das seguintes opções considera que melhor descreve(m) a sua pertença e/ou origem?”

Seguem-se os quatro grandes grupos: “Branco/Português branco/De origem europeia”, “Negro/Português Negro/Afrodescendente/De origem africana”, “Asiático/Português de origem asiática/de origem asiática”, “Cigano/ Português cigano/Roma/ De origem cigana”. E, dentro destes, uma diversidade de hipóteses: origem portuguesa, outra europeia ocidental, Europa de Leste, brasileira. Na categoria de negro, pergunta se é de origem de algum dos países africanos de língua oficial portuguesa, timorense ou brasileira. Na asiática, se é de origem chinesa, indiana, timorense, goesa, paquistanesa, macaense, bangladesh. Na de cigano, se é português cigano ou de origem romena.

Todas as opções permitem a inscrição de uma outra origem não elencada, em resposta aberta, e no final há ainda a hipótese de escolher outro grande grupo não especificado ou se é de origem mista. Esta definição de “categorias compósitas” pretende que o máximo número de pessoas se possa identificar e apresenta várias alternativas quanto à forma como os membros de determinada comunidade se autodenominam, justificam os membros do GT. 

A formulação da pergunta não refere explicitamente termos como “raça”, “cor”, “etnicidade”, “ancestralidade”, ou “línguas faladas em casa” para evitar conotações negativas e problemas de rigor científico, justifica o GT. Isto porque as categorias em causa são entendidas como categorias sociais, e não biológicas ou genéticas — algo que deve ser explicado no enunciado, recomenda o GT. 

Sugerir correcção
Ler 35 comentários