Interdependências, soberania(s) e Bruxelas aqui tão perto

Não se trata “apenas” de dependências, mas interdependências. Faces concretas, reconhecíveis por todos, da globalização e da liberalização da economia mundial. E também de “prioridades”, escolhas e equilíbrios.

A invasão da Ucrânia pela Rússia tem-nos revelado o mundo. Vemos, sentimos e compreendemos conceitos abstractos. Que tantas vezes tomamos como obstáculo entre nós e aqueles que decidem e que, por isso, nos fazem percepcionar as “suas” decisões como longínquas.

As dependência — “nossas” dos “outros” —, nos aumentos dos preços da energia ou dos cereais e produtos deles derivados. Nas soluções possíveis como compras conjuntas através da União Europeia (UE), que testámos na aquisição das vacinas contra a covid-19.

As dependências – dos “outros” em relação a “nós” — confirmamo-las pela decisão de adopção de contramedidas económicas robustas, dirigidas ao núcleo duro do regime russo. Para que revertam os seus comportamentos intoleráveis (porque “hão-de doer”). Firmeza e união (veremos se duradouras) mesmo com a certeza de que, em ricochete, também a “nós” nos “doerá”.

Como diminuir, ou até mesmo eliminar, a relação de dependência energética relativamente à Rússia? Acelerando a agenda da transição energética (que, mesmo antes da guerra, era ambiciosa). Reactivar, mesmo se de modo transitório, algumas fontes de energia fóssil na Europa. Em marcha. Insuficiente. Reforçar a parceria energética da Europa com os Estados Unidos. Acordada, sem surpresa, na sequência do Conselho Europeu extraordinário desta semana no qual participou Joe Biden. Ainda não chega. Inevitável (?) assegurar e negociar com fornecedores alternativos. No terreno. Aproximações à Venezuela, à Arábia Saudita ou ao Irão.

Outras dependências, outros riscos. Para lá da relação União Europeia/NATO-Ucrânia-Rússia.

E o diálogo com a China? Esta deixou claro: mesmo não condenando o comportamento da Rússia, e quiçá dando-lhe algum apoio militar, não querer ser alvo de quaisquer sanções por parte do “mundo ocidental”. Não há como esconder o sol com a peneira, a adopção de sanções contra aquele “parceiro de negócios” teria (para nós) um efeito… “mais” insuportável. Nem precisamos de ir à guerra. Sabemos o impacto que a pandemia teve em vários mercados de produção e distribuição da China. Não o lemos apenas nos jornais. Sabemo-lo do nosso dia-a-dia.

A crise no mercado dos cereais agravará a fome, lá onde já existe de forma estrutural e continuada (penso nalguns países no continente africano, como, por exemplo, a Somália). Diz-nos respeito. Por si só, não é suficiente? Sabemos que a segurança alimentar fica ameaçada (um dos temas discutidos pelos ministros da Agricultura da UE no dia 21 de Março). Sabemos que a instabilidade social e a pobreza em contextos sociais e políticos frágeis desencadeiam fluxos migratórios intensos (em nome da sobrevivência). Sabemos como é também aí que grupos armados e terroristas exploram a fragilidade e a necessidade de tantos para alimentar a radicalização das sociedades. Sabemos que isso nos diz respeito.

Não se trata “apenas” de dependências, mas interdependências. Faces concretas, reconhecíveis por todos, da globalização e da liberalização da economia mundial. E também de “prioridades”, escolhas e equilíbrios.

A NATO (qual Fénix renascida) retomou, com rapidez, a sua postura clássica e genética — aliança militar defensiva contra o inimigo figadal comum do Leste. A evolução, num ápice, do papel da União Europeia neste domínio é sublinhada por todos. Independentemente da família política ou da posição mais ou menos favorável ao sentido daquela evolução. Um debate mais profundo não pode ainda ser feito — a urgência da acção imposta pelo carácter grosseiro das violações russas não permite o momento. Contudo, importa notar diferenças substanciais.

No plano militar, a acção da UE é complementar à da NATO. Dizem-no todos os representantes de ambas as organizações e dos estados-membros. Dizem-no os tratados.

As interdependências (que nos trazem conforto, bem-estar, qualidade de vida) são, em situações como a que vivemos, fragilidades. Essa porosidade é uma outra face da globalização.

É no quadro da UE (fortemente política e não apenas técnico-burocrática) que os Estados podem desenvolver um conjunto de políticas que, não sendo estritamente militares, têm uma dimensão de segurança e defesa, que necessita de ser articulada com a dimensão militar (aquela que tantas vezes associamos ao coração da soberania).

A soberania é hoje multifacetada, traduz-se em múltiplas pertenças; é complexa, traduz-se em múltiplos domínios da acção política; e é, ela mesma, interdependente. É evidente a força que advêm, para cada um dos Estados, da coerência e unidade da política externa da União.

É no quadro da UE e da NATO que qualquer Estado europeu pode ambicionar garantir a sua defesa (e esperemos que assim continue!).

Uma guerra, pela sua natureza, não traz nada de bom. Reabre feridas antigas, abre novas feridas que, mais cedo do que tarde, se transformam nas feridas antigas que se reabrirão. Destruição, morte, vazio.

Esta guerra mostra-nos Bruxelas aqui tão perto. E responsabiliza-nos. Agora e no futuro.

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