O direito à manutenção da identidade dos pais

Sem nome e sem tempo, os pais sentem que passaram a orbitar em torno do seu filho, que muito amam e a quem querem dar o melhor do mundo, proporcionando-lhe uma educação o mais completa possível, para que possa ter as melhores oportunidades na vida.

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Juliane Liebermann/Unsplash

Por serem “pais de … ou “mães de…”, os pais não têm de abdicar da sua identidade, perdendo o direito a serem tratados pelo seu próprio nome.

Noutro dia, ouvia uma mulher que ainda não tem filhos confessar que não estava segura de desejar vir a ser mãe. Dizia que a assustava o preenchimento da agenda dos pais que, de segunda a sexta-feira, correm para levar os filhos da natação para o karaté e do violino para a equitação. Se somarmos a estas atividades os programas infantis dos fins-de-semana, como as festas de anos dos colegas da escola e os convites para brincarem em casa dos amigos, percebe-se que sobra pouco tempo na agenda dos pais. “Dá-me a sensação de que se tiver um filho deixo de ser eu, para passar a ser a mãe de …”, dizia.

É compreensível a apreensão desta mulher, indecisa entre abdicar da sua individualidade para passar a ser a “mãe de …”, ou continuar a ser ela própria, renunciando à maternidade. É que ser “mãe de …” ou “pai de …” parece ter-se tornado uma profissão a tempo inteiro, sem direito a férias, pausas nem tão pouco fins-de-semana. Esta metamorfose é tão significativa que, quando alguém se torna a “mãe de …” ou o “pai de…”, até deixa de ser chamado pelo próprio nome, o que representa uma privação da sua identidade.

Sem nome e sem tempo, os pais sentem que passaram a orbitar em torno do seu filho, que muito amam e a quem querem dar o melhor do mundo, proporcionando-lhe uma educação o mais completa possível, para que possa ter as melhores oportunidades na vida. Com a melhor das intenções, julgam que têm de estar permanentemente a entreter o filho com brincadeiras e programas, não só para evitar que se aborreça, mas também para estimularem o seu desenvolvimento cognitivo e psicomotor, desmultiplicando-se em atividades de curta duração que rapidamente entediam os mais novos, sempre sedentos e impacientes por novidades.

Assim, se durante a semana, os pais se desdobram para transportarem os filhos de casa para a escola e da escola para as atividades desportivas, musicais e artísticas, aos fins-de-semana a preocupação de aproveitar os tempos livres, ocupando-os com uma sucessão de novas atividades, programas e convívios, é responsável pela transformação dos tempos supostamente livres em tempos efetivamente ocupados. É como se o amor e a atenção dos pais tivessem de ser traduzidos em atividades, de acordo com uma lógica aditiva do fazer, que se traduz num processo quantitativo exigente, que deixa pouco espaço para o ser, tanto dos filhos como dos pais.

Segundo o filósofo Byung Chul-Han, “a chamada sociedade do tempo livre e do consumo não comporta, em relação ao trabalho, qualquer mudança substancial”, apresentando “uma temporalidade particular”: “O tempo que sobra, devido a um aumento de produtividade, é preenchido por acontecimentos e vivências superficiais e fugazes.” Contudo, esta temporalidade particular, assente numa lógica aditiva do fazer, conduz a dois grandes equívocos: o primeiro é o de que os pais têm de abdicar da sua identidade; o segundo é que o sucesso das crianças radica na multiplicação de atividades.

É claro que ter filhos, sobretudo quando são pequenos, é uma missão exigente, que implica generosidade, dedicação, investimento e até abdicação. Mas talvez seja exagerado pensar que temos de deixar de ser quem somos para passarmos a ser somente “pais de …”. A manutenção da própria identidade é um direito dos pais, inalienável por natureza. Os pais têm o direito de manter o seu próprio nome e de continuarem a ser quem são, apesar de e para além de terem filhos.

Mais do que a identidade, os pais têm o direito de desenvolver a sua individualidade, com objetivos e interesses próprios, bem como com tempo e disponibilidade para investirem na sua concretização. Terem ideais e interesses transforma os pais em modelos galvanizadores de quem os filhos se orgulham e em quem se podem inspirar, para criarem os seus próprios interesses, descobrirem os seus talentos e formarem a sua personalidade.

E os pais não têm de sentir que, quando estão a investir nos seus interesses, estão a privar os filhos de atenção. Essa preocupação assenta no pressuposto de que as crianças têm de estar sempre no centro das atenções dos adultos − o que não é verdadeiro nem justo –; que nunca podem brincar sozinhas – o que não é exato nem desejável −; e que têm de estar sempre a fazer coisas − o que não faz sentido nem sequer é vantajoso.

Na verdade, não é útil nem tão pouco positivo para as crianças estarem sempre acompanhadas por adultos, sem um espaço próprio para o desenvolvimento da sua autonomia, interioridade e sentido de responsabilidade. Também não é melhor que estejam permanentemente em ação, passando de umas atividades para as outras sem tempo para parar. Esta sucessão de atividades e o excesso de estímulos produzem uma atenção fragmentada, hiperativa e volátil, com impacto na capacidade de concentração e no investimento duradouro numa tarefa, essenciais para o sucesso na aprendizagem e para aprenderem a ser.

Pelo contrário, as crianças também têm de ser habituadas a ter o seu espaço e o seu tempo e, ainda, a não fazer nada. Só neste modelo de gestão do tempo, liberto da quantificação intensiva e extensiva do fazer, no qual se permita a pausa, o descanso e o abrandamento, poderá haver espaço para todos e para cada um − adultos e crianças − desenvolverem a sua identidade e encontrarem o seu lugar nessa teia de afetos à qual se dá o nome de família.


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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