Quando os mais novos trabalham mais horas do que nós

Sejamos honestos: eles estão nesta forma de esclavagismo que os adultos sonharam e construíram para si, para que os pais possam trabalhar (também de forma esclavagista, independentemente da sua remuneração) o número de horas que trabalham!

Foto
"A escola tem de conseguir criar humanos de primeira e não robôs de segunda!" Nelson Garrido/Arquivo

A Vanessa está no 6.º ano de escolaridade e já perdeu a conta ao número de vezes em que estudou no fim de semana. É que de segunda a sexta-feira não cabe nem mais um alfinete! Nem tempo há para o exercício de adolescer! Aulas diárias, apoio a português, explicação a matemática e ginástica duas vezes por semana. Começa pelas oito e meia da manhã e termina para lá das seis da tarde. Quando chega a casa ainda tem de fazer TPC, estudar para testes, preparar trabalhos e/ou apresentações.

Numa altura em que no país se discute a redução das 40 horas de trabalho semanal, vale a pena fazer contas e ver o que exigimos, enquanto sociedade, às nossas crianças e jovens. É que algo está muito errado quando têm de trabalhar mais horas que nós! E continua a estar terrivelmente errado se trabalham as mesmas horas, em excesso, que os adultos! Só que não há sindicatos que os defendam!

O que, de forma séria, nos devemos questionar é por que motivo têm os miúdos esta carga horária brutal. É porque faz bem à saúde? Contribui para o seu bem-estar? Ajuda nas aprendizagens? Sejamos honestos: eles estão nesta forma de esclavagismo que os adultos sonharam e construíram para si, para que os pais possam trabalhar (também de forma esclavagista, independentemente da sua remuneração) o número de horas que trabalham! Quantos pais se culpabilizam por isso? Quantos sentem que andam a descontar o tempo de vida da pior maneira?

Há uma música de Harry Chapin que conta esta história de forma sublime. Começa com um pai que vai recusando gentilmente tempo em conjunto com o filho por estar muito ocupado, enquanto o miúdo responde de forma aparentemente orgulhosa ao pai: “I’m gonna be like you, dad.” Termina com o filho, já adulto, declinando simpaticamente os convites feitos pelo pai que então diz: “He’d grown up just like me.” O tempo em família, com amigos e de lazer é um bem precioso, com forte impacto na nossa saúde mental. Se os adultos estiverem bem, os mais novos estarão bem melhor.

Mudanças sociais, económicas e tecnológicas aceleradas estão a expor as crianças e jovens a pressões e desafios, com consequente sobrecarga emocional, enfraquecimento dos laços sociais e impacto negativo nas aprendizagens e no seu bem-estar. Acresce que, não é novidade para ninguém, que os mais novos são um dos grupos mais fustigados pela pandemia, a curto, médio e longo prazo. Não falo do ponto de vista sanitário, mas sim emocional, social e académico, em particular em meios socioeconómicos mais desfavorecidos, mas não só. Os balanços que têm vindo a lume, apontam para perdas nas aprendizagens escolares, com atrasos significativos na aritmética e gramática.

É conhecido também o esforço num maior investimento nas escolas portuguesas na promoção do bem-estar social e emocional durante o período pandémico, mas as orientações são ainda demasiado centradas na recuperação e consolidação das aprendizagens, sendo algumas de eficácia dúbia, como é o caso do prolongamento dos anos lectivos por períodos outrora de férias. Além de um cansaço generalizado de alunos e professores tem resultado em quê?

Podemos estar a perder uma oportunidade de ouro de cortar na “gordura curricular” e numa visão economicista da educação, segundo a qual é necessário adquirir um conjunto enorme de conteúdos, nas “fábricas de formatação” escolar; de reestruturar currículos para que não sejam “mais um tijolo na parede, como cantam os Pink Floyd. O mais extraordinário é que somos nós, adultos, o grande problema. Achamos sempre que, como não se ensina como nós aprendemos, os miúdos não estão a aprender nada! Recuperar as aprendizagens não significa que seja um período de vida “perdido”, mas sim “alternativo” se valorizarmos as aprendizagens e experiências alternativas adquiridas, como referem os psicólogos Margarida Gaspar Matos, Sofia Ramalho, Osvaldo Santos e Tiago Pereira, no Estado da Educação 2020 (edição 2021).

Muitos jovens terão trabalhos em 2030 que hoje ainda não existem! O que se ensina na escola em breve estará desactualizado. Os que não forem capazes de continuar a aprender e a utilizar em situações reais o que aprenderam, não serão capazes de dar resposta aos desafios societais. Aquilo que é fácil ensinar e testar será fácil de ser automatizado. Por isso, como diria Andreas Schleicher, temos de pensar melhor sobre o que vai distinguir-nos das máquinas. Competências tais como empatia, resiliência e solidariedade fazem a diferença. A escola tem de conseguir criar humanos de primeira e não robôs de segunda!

Sugerir correcção
Ler 2 comentários