O regresso do clima de fim de festa

Está, portanto, criado o cenário para um drama político. O aviso de Marcelo sublinha esse drama, mas serve de deixa para que a esquerda tenha um ponto de fuga e negoceie o Orçamento.

O que sabe o Presidente da República que nós desconheçamos para repetir em dois dias seguidos avisos sobre o perigo de uma crise política caso não haja acordo nas negociações do Orçamento de 2021? A pergunta pode fazer sentido para reforçar o sentido de mistério com que se faz política, mas não é preciso grande argúcia em especial, nem informações classificadas, nem especial capacidade de previsão para percebermos que um certo ambiente de fim de festa regressou à actualidade. Como Marcelo Rebelo de Sousa ontem apontou, ele disse o que “qualquer pessoa sensata diria” perante a acumulação de sinais de instabilidade. Se o Presidente faz questão de trazer essa leitura “sensata” ao seu discurso, é apenas porque o preocupa uma evidência: o país não se pode dar ao luxo de ter uma crise política que, por limitações constitucionais, obrigue o Governo a vegetar durante, pelo menos, seis longos meses.

Estamos perante um problema que não é novo. Já na celebração dos 30 anos do PÚBLICO o Presidente deixou no ar o aviso de que “não se pode começar a legislatura em ambiente de fim de ciclo”. Em Março, quatro meses depois das eleições que reconduziram o PS ao poder, pareciam ter passado “quatro anos”, como notou na altura a editora de Política do PÚBLICO, Sónia Sapage. Era já claro para todos que a restauração do espírito da “geringonça” era uma impossibilidade. Que o fosso ideológico e programático entre o PS e os seus parceiros só poderia ser anulado através de compromissos e acordos agora impossíveis de obter. A pandemia suspendeu essa realidade conflitual. Mas, chegado o momento de discutir o Orçamento, as divergências voltaram a emergir.

O Bloco já fez saber que, antes de viabilizar o que quer que seja, exige que tudo o que foi negociado para 2020 seja cumprido, como se, entretanto, não tivéssemos de enfrentar a mais dura crise económica das nossas vidas. O PCP está em pousio porque navega a inacreditável condescendência com que o Governo e os seus apêndices assistem aos progressos da Festa do Avante!. E se o Governo tenta adoçar a esquerda com prestações suplementares para os mais pobres ou subidas mitigadas do salário mínimo, sabe que não tem condições perante o seu eleitorado moderado nem perante a Europa para deixar a dívida e o défice na estratosfera. Está, portanto, criado o cenário para um drama político. O aviso de Marcelo sublinha esse drama, mas serve de deixa para que a esquerda tenha um ponto de fuga e negoceie o Orçamento. O Presidente está preocupado? Sim, e com razão.

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