A crise ainda não bateu às portas do Bloco

Acreditar que no presente quadro de dificuldades é possível anunciar boas notícias pode ser tentador. Mas é mentira.

Catarina Martins tornou ontem claras as dificuldades que o Governo vai ter para aprovar o próximo Orçamento do Estado. O que disse sobre a entrevista de António Costa ao Expresso deste fim-de-semana é o prenúncio da turbulência política que ameaça o país. Porque se funda numa análise irrealista e perigosa. Se, declarando o óbvio, o primeiro-ministro diz que será muito difícil cumprir todas as promessas feitas antes da pandemia, Catarina Martins, apostando na irrealidade, insiste que o Bloco só negociará o Orçamento de 2021 se o Governo “cumprir o que foi acordado” no Orçamento deste ano.

O que Catarina Martins deixa subentendido é que cumprir o que foi acordado em 2019 depende apenas de um acto de vontade. Como se, entretanto, a economia não tivesse registado a pior quebra desde que há memória. Como se as previsões de receitas e despesas do Estado não se tivessem tornado uma miragem. Como se Portugal não estivesse a braços com uma crise que torna os anos duros da troika uma brincadeira. Como se os cidadãos não sentissem que em causa estão escolhas que exigem prudência e resistência até que cheguem dias melhores.

O PÚBLICO escreveu em editorial uma semana depois da primeira infecção em Portugal que iríamos viver “a hora mais negra do país e do mundo em muitas décadas”. Infelizmente, os últimos meses confirmaram essa previsão. O que impõe uma constatação penosa: não vai ser possível viver normalmente numa época tão anormal. Não vai ser possível que os trabalhadores do sector público ou do privado esperem a justa e desejável progressão dos seus rendimentos como aconteceu até 2019. Não vai ser possível, como António Costa anunciou, aumentar o salário mínimo como previsto. Nem proceder a cortes no IRS. Nem garantir progressões e aumentos na função pública como fora anunciado.

Acreditar que no presente quadro é possível anunciar boas notícias pode ser tentador. Mas é mentira. No próximo ano, e até que a travagem do vírus ou os efeitos do fundo europeu de recuperação se façam sentir, as escolhas serão terríveis. Vai ser necessário proteger os desempregados, os mais pobres, a educação ou a saúde pública. Vai ser preciso proteger empregos e rendimentos. Mas, na maior crise das nossas vidas, não podemos esperar grandes melhorias. A realidade é o que é. Pretender que a economia e as finanças públicas não estão no limiar do precipício, e querer viver como no ano passado quando o mundo avança numa espiral de incerteza e angústia, é uma falácia. Tão óbvia que pode servir para criar ilusões. Mas não ajuda a enfrentar o terrível problema que nos aflige.

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