O último estado de emergência de Costa

O afastamento dos partidos de esquerda, ou abalo no unanimismo à esquerda, acontece ao mesmo tempo que Rui Rio se tenta aproximar do PS.

Ainda antes de António Costa se levantar para se dirigir esta quinta-feira aos deputados no encerramento do debate da renovação do estado de emergência, já estava claro: esta seria a última vez que o Parlamento autorizaria um país em estado de emergência. O PCP, que se absteve desde o início, anunciou o voto contra com alguma violência (é “desproporcional”, tem permitido “abusos” do “patronato” que são a verdadeira “austeridade”, explicou o líder parlamentar, João Oliveira) e o Bloco de Esquerda avisou que seria a última vez que votaria a favor (“existem outros mecanismos que, sem ferir direitos constitucionais, serão os capazes e suficientes numa nova fase”, declarou a líder do partido, Catarina Martins).

Quando discursou, de frente para os deputados, o primeiro-ministro confessou desejar que este fosse o último período de excepção. Mas poderia ser de outra forma com a oposição dos dois partidos à sua esquerda? Diria que não. O estado de emergência é uma situação tão excepcional e ameaçadora dos direitos e liberdades que só pode existir com um amplo consenso à esquerda. E porquê à esquerda? Porque foi com uma grande maioria de esquerda que a Constituição de 1976 foi aprovada e foi então concebido o artigo que previa o estado de emergência que só viria a ser “estreado” 44 anos depois.

O curioso é que este afastamento dos partidos de esquerda, ou abalo no unanimismo à esquerda, acontece ao mesmo tempo que Rui Rio se tenta aproximar do PS. Ou, posto de outro modo, será o primeiro acto consequência do segundo?

Vejamos. Rui Rio deu uma entrevista à RTP há quase três semanas a falar em “governo de salvação nacional”, na semana passada admitiu estar “naturalmente disponível” para viabilizar o orçamento suplementar que Mário Centeno irá apresentar em breve para fazer face à covid-19. E foi ainda mais longe: “com certeza” que também terá abertura para viabilizar os Orçamentos de Estado de “2021, 2022 e 2023” porque, nas suas palavras, “vão ser orçamentos muito condicionados por aquilo que estamos a passar neste momento”. “Um líder da oposição responsável não deve fazer uma dificuldade enorme ao país apenas para criar dificuldades ao Governo”, vincou na altura. E esta quarta-feira escreveu uma carta aos militantes a justificar a estratégia de colaboração com o Governo instando a que os sociais-democratas resistam “à tentação de agravar os ataques aos governos em funções, aproveitando-se partidariamente das fragilidades que a gestão de uma tão complexa realidade sempre acarreta”.

Chegados aqui, voltemos a olhar para os antigos parceiros de “geringonça” do PS, PCP e BE, a quem desnecessariamente António Costa irritou ao evocar a sua boa vontade apenas em “tempos de vacas gordas”. Parte da direcção do PCP que nunca digeriu bem a “geringonça” vê a oportunidade de cortar com o PS, a quem sempre chamou um partido de direita. O BE, esse, já desafiou Costa a escolher entre a esquerda e o bloco central e avisou, pela voz de João Teixeira Lopes, que, apesar do estado de emergência, “a política não acabou nem pode acabar”.

Visto assim, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins parecem mesmo estar a empurrar António Costa para o PSD. Mas, convenhamos, foi Rio quem primeiro esticou os braços. 

 
Sugerir correcção
Ler 4 comentários