A esquerda enterrou o passado e enleva-se num namoro público

Os 40 anos de críticas e de ódios de estimação entre os três principais ramos da esquerda acabaram neste Outono. Por dentro, o PCP e o Bloco não mudaram. Mas mudaram as circunstâncias e as expectativas de conquista de poder. Mais do que o amor, parecem pesar as conveniências.

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Soares e Cunhal em 1975 Carlos Lopes

Na noite de 6 de Novembro de 1975 o país parou para assistir ao debate na RTP entre Mário Soares e Álvaro Cunhal e registou para a posteridade a frase “olhe que não, olhe que não” que o secretário-geral do PCP largou quando o seu adversário socialista o acusou de querer instaurar em Portugal um “regime totalitário”. Mas se essa frase ficaria na memória das campanhas democráticas, já ninguém se lembra da pergunta que, já no final do debate, Cunhal dirigiu a Soares: “Vai o PS rever o seu sistema de alianças no sentido de deixar as alianças reaccionárias e procurar alianças com as forças de esquerda?”, indagou Álvaro Cunhal. Nesses dias de brasa, a resposta era fácil e assim ficou durante 40 anos: não, o PS jamais se coligaria ao seu mais figadal inimigo político. Hoje, seja qual for o resultado das negociações entre o PS e o PCP, parece que esse clima faz parte do passado.

O que se passou? O que leva as três correntes tradicionais da esquerda portuguesa a decidirem neste Outono quebrar o gelo que as separava e a admitir, pelo menos, negociações que podem viabilizar um Governo socialista? António Costa olha para o novo clima político com a suspeita de que a história se descongelou. “Isto é como derrubar os últimos restos de um muro de Berlim”, admite. É também possível aceitar que o que está em causa não é tanto uma mudança profunda e solene da forma como cada face da esquerda olha para as outras, mas mais o reconhecimento de que a guerra fratricida que dura desde o 25 de Abril é uma conta na qual ninguém ganha. “Os partidos políticos são assim mesmo”, diz o cientista político António Costa Pinto para explicar que, muito mais que uma transformação profunda na identidade do PCP, do Bloco e do PS, o íman que os atrai é a necessidade de captar votos e o desejo de chegar ao poder.

Pode ser também que, entre eles, tenha chegado o momento do “perdoa-me”. Que tenha surgido uma lâmina para quebrar o gelo. Augusto Santos Silva diz que uma das razões que inspiram a abertura do Bloco e do PCP às negociações com o PS “são as sequelas de Março de 2011”, quando os dois partidos da esquerda se juntaram ao PSD e ao CDS para chumbar o PEC IV, abrindo portas ao triunfo da direita e às ondas de choque que se fizeram sentir até às últimas eleições. Como António Costa Pinto, Augusto Santos Silva nota que o contexto político actual do país se sobrepõe ao peso que as ideologias ou os programas que cada uma das três alas da esquerda subscreve. Mais do que uma paixão súbita, o que está em causa é um amor conveniente.

Com uma pequena diferença: o politólogo acredita que “hoje é mais difícil fazer um governo que una a esquerda” por causa da “condicionalidade imposta pela Europa” (o Pacto de Estabilidade e Crescimento ou o Tratado Orçamental que limitam a derrapagem do défice) e também pelo facto de a situação financeira do Estado não permitir que um putativo governo liderado pelo PS possa “redistribuir” rendimentos através das políticas sociais. “Esse é que é o grande dilema”, nota António Costa Pinto. Já Augusto Santos Silva, sociólogo da Faculdade de Economia do Porto e destacado militante do PS, nota que hoje há uma nova geração de dirigentes nos três partidos que não viveu os dias conflituosos do Verão Quente, quando o PS, o PCP e a multidão de organizações de extrema-esquerda que nalgumas das suas variantes vieram dar origem ao Bloco viveram no limiar de uma guerra civil. “Isso já passou”, diz Augusto Santos Silva.

As feridas abertas do PREC
No dia em que Álvaro Cunhal e Mário Soares se confrontaram na televisão, Catarina Martins estava para fazer dois anos. O conhecimento mais próximo que as gémeas Mortágua podem ter desses dias em que Portugal hesitou entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral pode ter sido a memória que o seu pai, Camilo Mortágua, lhes transmitiu com histórias mirabolantes como as que protagonizou no desvio de um avião da TAP ou no mítico assalto ao Santa Maria, em 1961. António Costa nasceu neste ano e chegou à política por volta de 1975, tinha então 14 anos, mas não é crível que tenha sentido na pele a hostilidade que comunistas, trotskistas, marxistas-leninistas e afins devotavam ao PS. A haver memórias vívidas e feridas abertas desse passado cada vez mais remoto, há que procurá-las no Comité Central do PCP – Jerónimo de Sousa é dessa geração. É por isso que Augusto Santos Silva admite que possam vir daí os principais obstáculos a um entendimento com o PS. “A linha dura está lá, nos bastidores”, avisa Santos Silva. 

Enquanto as quase 40 organizações da extrema-esquerda que se fizeram ouvir depois do 25 de Abril se entretiveram em guerras intestinas, num combate genérico à reacção ou a infernizar a vida ao “social-fascismo” do PCP, os comunistas e os socialistas travaram entre si um braço-de-ferro tão intenso que dificilmente poderia ser esquecido. Nos anos de chumbo da ditadura, os comunistas e uma legião de oposicionistas vindos do republicanismo foram capazes de chegar a plataformas de entendimento para lançar candidaturas presidenciais com força para fazer tremer o regime. Mas no estertor do Estado Novo, nas eleições de 1969, as fissuras entre a CEUD (socialista) e a CDE (comunista) eram já visíveis.

No terreno, o PCP dava cartas em organização, mobilização e eficácia na luta contra o regime. O partido fora fundado em 1921 e alicerçou a sua resistência numa tradição de luta clandestina que lhe emprestaria uma carga histórica que ainda hoje se faz sentir. O PS nasce muito depois, em 1973, sob a égide da Acção Socialista Portuguesa criada em Novembro de 1964 em Genebra para federar o republicanismo, a tradição socialista que reclamava o legado do velho partido criado em 1875 por José Fontana ou Antero de Quental. Álvaro Cunhal era o líder incontestado dos comunistas, enquanto no PS a dupla Mário Soares/Salgado Zenha acumulava prestígio.

Quando o 25 de Abril estala, comunistas e socialistas concordam no essencial: a transição democrática seria feita “num sentido democrático, sem necessidade de luta armada, por meios pacíficos», para citar a estratégia aprovada pelo PCP já em 1957. Para os comunistas, o que estava em causa era uma evolução gradual, não uma revolução proletária após a revolução dos cravos. O historiador António José Telo nota na sua História Contemporânea de Portugal que os planos do PCP passavam pela instauração de um “regime burguês progressista” e avançar, numa segunda etapa, com a revolução socialista. Nada disto incomodava Soares e os seus pares, que tinham adoptado o marxismo, embora o articulassem de forma a poder acolher um amplo espectro de sensibilidades da esquerda. Depois, “o PS sabia que não podia menosprezar todo o património político do PCP – fruto da sua história, o PCP surgia como o partido mais organizado para liderar a Revolução”, escreve Ângela Montalvão Machado, catedrática de Ciência Política na Universidade Lusófona no seu ensaio O Binómio ‘Esquerda/Direita’ no Portugal pós-25 de Abril.

Depois dos primeiros meses de coexistência pacífica, o verniz entre socialistas e comunistas começa a estalar logo em Janeiro de 1975, quando o III Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves, avança com a lei de unicidade sindical, que entregaria à Intersindical toda a representatividade do mundo do trabalho. A lei é apoiada pelo PCP e pelo MFA e liminarmente rejeitada pelo PS – e pelos representantes do PSD. Num comício de protesto organizado no pavilhão dos Desportos sob o lema “Socialismo Sim, Ditadura Não”, Salgado Zenha explicava o porquê da recusa: “Começa-se pela unicidade sindical, depois passa-se à unicidade ideológica e ao partido único”. O cimento solidificado na luta oposicionista começa a quebrar e em 3 Fevereiro de 1975, numa entrevista ao jornal francês Le Figaro, Mário Soares está já ao ataque, censurando o PCP pela sua “arrogância, o desejo de ter sempre razão, a sua pretensão de ser o único partido da classe operária”.

O poder do voto e da rua
Ainda antes do Verão, a conflitualidade entre os dois partidos sobe de tom. Nas eleições para a Constituinte de Abril de 1974, o PS ganha com 37.7% dos votos, enquanto o PCP não vai além de uns parcos 12.46%. Mas se os socialistas vêm a sua legitimidade democrática reforçada, o PCP continua a exercer a sua legitimidade revolucionária no Governo, na máquina do Estado, na comunicação social e nas organizações sindicais. Meses mais tarde, Álvaro Cunhal dirá numa entrevista à jornalista italiana Oriana Fallaci: “As eleições para mim não têm nenhuma importância, nenhuma mesmo. Se pensa que a questão pode ser reduzida a percentagens de votos recebidos por um partido ou por outro, está a enganar-se a si própria”. O teor da entrevista seria desmentido, mas ainda antes dos dias de brasa do Verão PS e PCP estavam irremediavelmente separados pelas ideias de democracia e pela forma como haveriam de as consolidar.

Ao lado do braço-de-ferro entre os colossos da esquerda, um enxame de organizações da extrema-esquerda ia aumentando o ruído de fundo. Na sua maioria, reclamavam a herança marxista-leninista, inspiravam-se em Mao ou em Trotsky, eram socialistas radicais ou católicos progressistas e tinham em comum uma aversão ao “social-fascismo” de índole soviética. Apesar da sua reduzida importância eleitoral (nas legislativas de 1976 só a UDP elegeria um deputado), o seu poder real na juventude e nas elites urbanas era um perigo para o PCP. Não admira por isso que a sua repressão estivesse na primeira linha dos governos provisórios dominados pelo PCP e pela ala dura do MFA – a 28 de Maio de 1975, numa enorme operação policial, cerca de 400 militantes do MRPP são detidos. Nessa lista constavam os nomes de Durão Barroso, Ana Gomes, Fernando Rosas, um dos fundadores do MRPP em 1970, ou Teresa de Sousa.

Passado o "caso República", que levaria o PS a abandonar o Governo provisório, e a rixa do 1.º de Maio, em cujas celebrações Mário Soares e Salgado Zenha foram proibidos de participar, o Verão Quente aprofundaria as divergências. A 18 e 19 de Julho o PS organiza manifestações no Porto e concentra mais de 200 mil pessoas na Fonte Luminosa, em Lisboa, num comício que por estes dias tem servido de estandarte aos que, no PS, se opõem a uma aproximação ao PCP. Os comunistas apelam à instalação de barricadas nas portas de Lisboa para “cortar o passo à reacção”, mas sem sucesso. A “maioria silenciosa” do país revelara-se em favor do PS e daí para a frente nada seria como dantes. Com o 25 de Novembro, os apelos à democracia popular e o curso do processo revolucionário são travados. O PS, que ganharia as eleições de 1976, entra no arco da governação e cria um muro que isola a sua esquerda. A actuação do PCP durante o gonçalvismo “tinha criado anticorpos tais que nenhum partido democrático, a começar no PS, podia sequer pensar numa coligação governamental com o PCP”, escreveu António José Telo.

A esquerda nas gavetas
A normalização democrática começa então a pautar-se pela nova ordem partidária na qual o PS, o PSD e o CDS se dedicaram a distribuir o poder. O fim da euforia revolucionária e consolidação das principais conquistas de Abril, por um lado, e a unidade da direita em 1979 com a criação da AD, por outro, levam os socialistas a reconhecer que o seu programa estava amarrado a um tempo que já não existia. No documento Dez Anos Para Mudar Portugal – Proposta PS para os Anos 80, aprovado no III Congresso, em 1979, o partido afasta-se da ala mais radical do marxismo e situa-se no "modelo do socialismo democrático ou da social-democracia europeia". Margareth Thatcher acabara de chegar ao número 10 de Downing Street para iniciar a sua revolução conservadora, o SPD alemão enterrara a luta de classes e o desejo de matar o capitalismo já em 1959 e por toda a Europa a família política do PS ia a caminho do centro.

O PS estava, nas palavras de Mário Soares, a "meter o socialismo na gaveta", uma tarefa à qual o partido se dedicou com afinco pelo menos nos dez anos que se seguiram. Em 1986, ano de entrada do país na CEE, o VI Congresso proclama que o partido deixará de procurar "edificar uma sociedade sem classes" para se dedicar a "instaurar uma sociedade mais justa e igualitária, em que a diferenciação de situações sociais seja a necessária à iniciativa económica e social e corresponda ao mérito das pessoas". A palavra “nacionalizações” ou a expressão “revolução socialista” saltam do texto. A economia de mercado entra no léxico do PS. Anos mais tarde, em 1991, as veias desaparecem do punho que simboliza ao partido. No ano seguinte, com António Guterres, o PS associa a sua imagem a uma rosa.

Os anos 80 são a década de hegemonia do PSD, que sozinho, com o CDS na AD ou com o PS no Bloco Central jamais sairá do poder. Ainda assim, as possibilidades de entendimento do PS com o PCP permanecem remotas. Os dois partidos estiveram unidos no apoio à reeleição de Ramalho Eanes em 1980, mas apenas porque Mário Soares se tinha afastado após a briga do “ex-secretariado”. Nas presidenciais seguintes, de 1986, o PCP apoia Zenha na primeira volta, mas na segunda tem de “engolir sapos” para evitar a derrota de Soares frente a Freitas do Amaral. Na essência, porém, o PCP é o partido que menos muda na sua organização e no seu programa, nota Ângela Montalvão Machado. Em 1988, no XII Congresso, considera que "Portugal deve defender a desactivação da estrutura militar da NATO, da qual se deve progressivamente desvincular", reafirma que "no horizonte da evolução social está o comunismo” e a devoção do PCP ao marxismo-leninismo.

 “Quase todos os partidos comunistas tradicionais da Europa Ocidental em 1974 tinham adoptado o chamado eurocomunismo, numa das suas muitas variantes, o que os levava a afastar-se das orientações de Moscovo, a recusar a ditadura do proletariado e a aceitar as regras de funcionamento das democracias ocidentais. No PCP, pelo contrário, prevalecia a mais estrita ortodoxia ao pensamento soviético”, escreve António José Telo. O muro de Berlim caiu, a Perestroika acabou com o farol da União Soviética, mas o PCP subsistia, em boa parte à sombra dos resultados de 1983 e de 1985, nos quais, com o embalo da austeridade, somou 18 e 15,5% dos votos. Nos anos 90, o “novo” PS de Guterres sucede à década de Cavaco e o partido estabiliza na casa dos 8 ou 9%, de onde nunca mais sairá. Em boa parte porque em 1999 estava para aparecer o maior fenómeno da vida partidária portuguesa desde 1974: o Bloco de Esquerda – o caso do PRD é efémero e sem raízes.

O Bloco nasce de uma constatação óbvia: o que restava da extrema-esquerda dos tempos revolucionários estava a morrer. Nas eleições de 1995, a UDP consegue apenas 0,4% dos votos e o PSR de Francisco Louçã 0,64%. No PÚBLICO, Fernando Rosas, um histórico da extrema-esquerda apelava à convergência. Luís Fazenda lê-o e pede-lhe ajuda para operar um milagre: o de unir forças políticas com um património muito maior de dissídio do que de união. Rosas envolve Francisco Louçã e Miguel Portas, que liderava uma facção de dissidentes do PCP, a Política XXI. Contra muitas previsões, o Bloco nasce em 1999 empurrado pelas lutas do Fórum Social Mundial, pela causa de Timor, pelo apelo à liberalização do aborto, em favor das causas gay ou das drogas leves. A sua mensagem era irreverente, dirigida às juventudes urbanas imunes às grandes causas do pós-25 de Abril. Em 1999, o Bloco começa a sua carreira meteórica com a eleição de dois deputados; este ano chegou aos 19.

Enquanto a direita se consolidava numa plataforma capaz de criar maiorias com Cavaco, com Durão Barroso ou com Passos Coelho na liderança, a esquerda fragmentava-se. Só por uma vez, com José Sócrates, o PS conquistou uma maioria absoluta. Se em tempos Mário Soares se referia ao PS como um partido-charneira, o actual posicionamento ao centro tanto o expõe aos ataques da direita como dos partidos à sua esquerda. Os quatro anos de austeridade e o esmorecimento na memória dos ódios do PREC tornam pela primeira vez possível, ao menos, um diálogo. O PS porque dá conta que sem um pé na esquerda dificilmente conseguirá uma maioria para ser poder; o PCP porque percebeu que nada ganha “em manter-se fechado no seu castelo”, como nota Augusto Santos Silva; o Bloco porque receia ser acusado de viabilizar por omissão mais um governo da direita.

Muito mais do que mudanças nos programas, o que explica esta aproximação é mudança “na envolvente no interior dos partidos”, ou seja, “a pressão dos eleitorados”, diz Santos Silva. Não havendo empatia ou proximidade nas políticas, o que move as lideranças do PCP ou do Bloco são as velhas “tácticas leninistas”, de “adaptar-se quando não se consegue mudar”, de “fingir até ao fim”, nota o sociólogo, que não esconde a “enorme surpresa que está a ser esta evolução”. Tentar colar o que permanece por natureza separado e diferente pode ser, porém, um enorme risco. “Um Governo PS será obrigado a cumprir os acordos de Bruxelas e o risco de desilusão do eleitorado à esquerda é muito grande”, principalmente no “eleitorado do Bloco”, nota António Costa Pinto. O PS arrisca-se a ficar dividido. E só o PCP parece capaz de limitar as sequelas desta mudança histórica através da eficácia do centralismo democrático.

Mas essas são, porém, contas a fazer mais lá para a frente. O que por estes dias se vive basta por si só para moldar um momento histórico: pela primeira vez na II República (ou na III para os que consideram o Estado Novo como uma República plena) os partidos da esquerda conseguem falar sem ser através de críticas e acusações.

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