Estado Islâmico é bombardeado há um ano e continua a somar vitórias

Coligação liderada por Washington garante apoio ao plano político e militar de Bagdad para recuperar regiões perdidas para os fundamentalistas. Um combate que será “de longo prazo” no Iraque e que depende de Assad na Síria.

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Funeral de dezenas de polícias mortos num ataque suicida em Najaf Reuters

Já toda a gente tinha percebido, bastava estar com alguma atenção. Mas o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, disse-o a quem ainda acredita que pode vir em seu auxílio: “Há um fracasso da parte do mundo. Fala-se muito de apoio ao Iraque. Vê-se muito pouco no terreno”. O mesmo, ou pior, teria dito a oposição síria, caso tivesse estado na reunião que juntou 20 países e organizações para debater a estratégia a adoptar face ao autodesignado Estado Islâmico.

Nas últimas semanas, os fundamentalistas somaram vitórias importantes no Iraque, conquistando a capital da província de Anbar, Ramadi, e tornando-se assim senhores da região que se estende de Bagdad até à fronteira síria. Um dos objectivos do grupo é justamente acabar com linhas que dividem países mas não fazem sentido no califado que há um ano proclamou.

Enquanto Ramadi caía, a 17 de Maio, na Síria, os combatentes jihadistas tinham o mundo concentrado nos seus avanços em direcção à histórica cidade de Palmira, um dos primeiros locais classificados pela UNESCO como Património da Humanidade. Mas ainda se chorava Palmira, no último fim-de-semana, e já os combatentes lançavam um ataque surpresa contra forças da oposição a Bashar al-Assad bem mais a norte, na província de Alepo, somando a conquista de cinco vilas, incluindo Azaz, na fronteira com a Turquia.

Azaz já esteve sob controlo dos radicais até uma coligação de combatentes árabe sunitas (Exército Livre da Síria) e milícias curdas os expulsar, no início de 2014. É a última vila antes de Bab al-Hawa, o mais importante posto fronteiriço entre a Turquia e a Síria: dali se chega a Alepo. Antes, partiam e chegavam mercadorias à capital comercial e industrial da Síria, agora chegam reforços, armas, comida, água, combustível para os rebeldes que ainda combatem Assad.

Se a fronteira ficar nas mãos dos jihadistas, dizem estes homens, é toda a presença da oposição síria na cidade de Alepo que fica em risco. “Será automático, o Estado Islâmico vai conseguir controlar Alepo”, avisa Abu Mohammed, nome de guerra do comandante de um grupo da oposição. “A situação é desesperada”, diz, citado pelo jornal Washington Post.

Assad e os radicais
A oposição síria já acusou muitas vezes Assad de ser cúmplice do Estado Islâmico e de ter promovido o seu crescimento para dividir os rebeldes. Desta vez, a coincidência do ataque na província de Alepo com uma vaga de bombardeamentos com barris (cheios de explosivos, pregos e partes de maquinarias) que matou mais de 100 pessoas na cidade fez com que outros sublinhassem a cumplicidade.

“As notícias que temos indicam que o regime está a fazer ataques aéreos em apoio aos avanços do ISIL em Alepo”, escreveu no Twitter a embaixada dos EUA na Síria. Washington ainda trata o Estado Islâmico por ISIL – Estado Islâmico do Iraque e do Levante – como os sírios e os iraquianos ainda lhe chamam Daash. “A coordenação… é uma prova clara de que os dois parceiros, os jihadistas e Assad, estão do mesmo lado contra os mujahedin [combatentes] revolucionários na Síria”, acusa o coronel Mohammed al-Ahmed, porta-voz do principal grupo da oposição a combater em Alepo.

Agora, os rebeldes sírios estão encurralados. Com as armas que capturaram ao tomar Palmira, os radicais ganharam alento para se lançarem à conquista de Alepo pelo norte. A sul estão as forças de Assad. Isto dois meses depois da conquista de Idlib por parte dos combatentes da oposição, no que constituiu o maior avanço em anos contra o regime. Antes de Idlib, só uma capital de província escapava a Assad: Raqqa, ainda o centro de poder do Estado Islâmico.

Azaz depois de Kobane
Assad viu-se acossado em Idlib, no nordeste; os jihadistas aparentam ter ido em seu auxílio em Alepo, no noroeste, o maior dos prémios, cidade que há quase três anos é um campo de batalha, dividida ao meio, entre bairros sob controlo do regime e outros geridos por grupos da oposição.

No Iraque, onde os Estados Unidos e os países que Barack Obama juntou para bombardearem posições jihadistas e formarem e aconselharem no terreno as unidades – exército, política e milícias – que lutam em nome do Governo de Haider al-Abadi, impedir as vitórias do Estado Islâmico deveria ser mais fácil. Não tem sido. Mas na Síria a coligação internacional também tem olhos: os rebeldes considerados moderados partilham com a aviação estrangeira as coordenadas das posições jihadistas.

“Até agora, não ouvimos nada”, diz sobre Alepo Abu Mohammed. Nem resposta nem bombardeamentos que possam provocar a fuga dos radicais, como acabou por acontecer em Kobane, 128 quilómetros a leste, também na fronteira turca. Aí, os curdos aguentaram um assalto cerrado dos jihadistas até que as bombas norte-americanas vieram em seu apoio e a cidade que o Estado Islâmico dera por conquistada foi libertada. Entretanto, houve milhares de mortos e muitos mais milhares de refugiados e Kobane ficou praticamente destruída.

A coligação antijihadista iniciou os seus bombardeamentos há um ano, primeiro no Iraque, depois na Síria. Os ataques aéreos já ultrapassaram os 4000 mas os radicais ultraviolentos não só acumulam avanços no terreno como aumentam a capacidade de recrutamento.

Actualmente, diz o chefe do Governo iraquiano, os estrangeiros nas fileiras do Estado Islâmico chegam aos 60% - nunca foram tantos. Mesmo com todos os iraquianos saudosistas de Saddam Hussein que se lhes juntaram quando os viram expulsar as autoridades xiitas de cidades como Mossul, a segunda maior do Iraque. “Há um problema internacional e deve ser resolvido”, disse Haidar em Paris. “Temos de ter uma explicação para o facto de haver tantos terroristas a vir da Arábia Saudita, do Golfo, do Egipto, da Turquia e dos países europeus.”

Milícias e atentados
Para além de queixas, Haidar levou ao encontro um plano para reconquistar Anbar. Para o pôr em marcha, quer “acelerar o apoio aos combatentes tribais [sunitas] da província para que eles lutem contra o Daash ao lado das forças iraquianas” e “garantir que todas as forças que participem na libertação da província operam sob comando e controlo do primeiro-ministro e da cadeia de comando iraquiana”.

Isto para impedir os iraquianos árabes sunitas de fugirem face aos avanços de Bagdad quando quem os lidera são as chamadas Unidades de Mobilização Popular, constituídas por dezenas de milhares de combatentes (na maioria xiitas e apenas 5000 sunitas), treinadas e financiadas pelo Irão. O Pentágono insiste que todas as unidades estão “sob controlo do Governo iraquiano”, nem todos os iraquianos acreditam.

Mas mesmo que Haidar consiga organizar melhor os combates e recrutar mais sunitas – ninguém vive por gosto no jugo do Estado Islâmico; por mais que seja a frustração contra o regime, a partir do momento em que os radicais estabelecem as suas regras (das decapitações à tortura, passando pela ameaça de morte a qualquer homem que faça a barba, como em Mossul), só o medo congela e impede a revolta –, as armas dos jihadistas são as habituais de quem enfrenta um adversário desigual. E funcionam. Cada vez mais, como aconteceu com o antecessor do grupo, a Al-Qaeda no Iraque, entre 2004 e 2006, essas armas chamam-se atentados suicidas.

O caos sírio
Os raides aéreos podem pouco contra os camiões carregados de explosivos com que os radicais conquistaram Ramadi e voltaram a espalhar o medo em cidades como Bagdad ou santuários xiitas como Najaf. Haidar acredita que com mais armas e bombardeamentos acabará por sair vencedor. Dos seus parceiros, ouviu promessas de “determinação total” nesta luta, que será, nas palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Laurent Fabius, “um combate de longo prazo”.

Washington, que tem sido pressionado por Haidar e por aliados como os sauditas e os turcos a envolver-se mais, com soldados no terreno a comandar os iraquianos, por exemplo, considerou que o plano trazido pelo primeiro-ministro “é um bom plano política e militarmente”. Em substituição de John Kerry, o secretário de Estado adjunto dos EUA, Antony Blinken, concluiu a reunião de Paris afirmando que “hoje, no Iraque, temos uma boa estratégia”, uma estratégia “vencedora” desde que todos “cumpram as suas obrigações”.

Haidar confia em si mas admite que o futuro do Iraque depende de saber se a Síria tem ou não futuro. O Estado Islâmico, lembrou, chegou ao Iraque vindo da Síria. Os jihadistas, já se sabe, não conhecem fronteiras. Aliás, têm por objectivo fazê-las desaparecer. É por isso normal “que o caos sírio tenha um impacto directo na eficácia da acção no Iraque”, disse Fabius. E quanto à Síria, mais de quatro anos, 220 mil mortos e dez milhões de deslocados depois, ninguém sabe o que fazer. No comunicado final da reunião, lê-se que a coligação toma nota “da deterioração contínua da situação na Síria e da incapacidade e ausência de vontade de Bashar al-Assad em combater o Daash”.

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