Calor extremo: “Mesmo que vá ao centro de saúde, não ‘metem’ lá acidente de trabalho”

Tabalho executado ao ar livre, como agricultura ou construção, é dos que representam mais risco de exposição ao calor extremo. Falta de meios da ACT abre caminho a incumprimento da lei.

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Trabalhadores imigrantes contratados por explorações agrícolas são alguns dos mais expostos a ondas de calor LUSA/MÁRIO CRUZ
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Na Estação de Tratamento de Águas Residuais das Águas do Tejo Atlântico, no município de Alenquer, há sempre trabalho ao ar livre. É preciso tirar os registos, fazer pequenas intervenções para ter o equipamento a funcionar, recolher amostras para fazer o tratamento das águas da Grande Lisboa e zona Oeste. O calor faz-se sentir, mas muito do trabalho tem mesmo que ser ao ar livre.

Aqui, sempre que possível, tenta-se organizar o trabalho dos cerca de 15 trabalhadores para evitar “os períodos de maior exposição e o pico de temperatura” e tentar que as actividades mais demoradas fiquem para os períodos de menor intensidade, explica-nos Dario Ferreira, operador da ETAR. Mas evitar completamente essas horas “seria num mundo ideal. No mundo real, isso não é possível” — muitas vezes, “é um serviço que não pode ser deixado para depois”.

Francisco Franco, trabalhador rural de profissão e dirigente sindical, conta que os trabalhadores na agricultura “já têm as suas manhas”, habituados a proteger-se do calor. “Aqui no Alentejo normalmente até se trabalha das 6h às 14h, para evitar aquele período do meio-dia até às 16h”, descreve. Agora a tempo inteiro no Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura e das Indústrias da Alimentação, Bebidas e Tabacos de Portugal (Sintab), Francisco trabalhava no campo, numa empresa de manutenção e limpeza das vinhas, num trabalho mais manual.

Algumas empresas, cientes de que o calor afecta não apenas a saúde, mas também a produtividade, facilitam este tipo de horário para os trabalhadores evitarem o pico de calor, explica. Mas isso não resolve tudo: “Já me senti mal duas ou três vezes no trabalho...”

Estas situações surgem mais nos sectores em que o trabalho é executado ao ar livre, como a agricultura, construção ou actividade portuária, mas Andrea Araújo, dirigente da comissão executiva da CGTP responsável pela área do Emprego, recorda também o trabalho “em minas ou nas situações em que as empresas, normalmente industriais, têm más condições de ventilação e refrigeração dos locais de trabalho”.

Trabalho precário

A agricultura tem outra particularidade: é um trabalho sazonal. “Continuamos a ter uma instabilidade enorme nas nossas vidas. No Inverno, se chover uma semana, é uma semana sem trabalho, é uma semana que a gente não recebe. Infelizmente, ainda há essa prática...”

E enquanto quem vive na região “quer pensar mais além, não quer pensar só no final do mês”, o trabalho é cada vez mais feito por prestadores de serviço temporário, muitos deles imigrantes. Os trabalhadores que vivem no território, nota Francisco, estão mais protegidos. “Agora trabalhadores que vêm de fora…”

As empresas de trabalho temporário, diz ao Azul, “têm sido o motor da maior parte dos problemas que temos encontrado”. “Normalmente são as que criam mais dificuldades aos trabalhadores. São os trabalhadores que têm que comprar luvas, chapéus, botas… Têm sido o alavancar da exploração.”

Além disso, lamenta Francisco Franco, a ACT tem tendência a só actuar quando há denúncias ou quando há grandes casos, como a exploração de trabalhadores imigrantes em Odemira. “Não vão sair de Beja para uma herdade em Odemira porque apareceu um trabalhador que desfaleceu durante a hora de trabalho.”

Segurança no trabalho

No site da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), as estatísticas entre 2020 e 2023 identificam apenas uma ocorrência de acidente grave por “efeitos de temperaturas extremas, luz e radiações”, ocorrido em 2020. Há ainda três ocorrências de acidentes graves e uma morte por “fenómenos físicos e elementos naturais” em 2021 e ainda um acidente grave e uma morte em 2022.

Contudo, não há indicações de que algum destes acidentes tenha que ver com fenómenos meteorológicos, nem a ACT esclareceu ao Azul se foram identificados casos neste sentido. O dirigente sindical Francisco Franco não se espantaria se fosse zero — “deve ser perto de zero” — o número de casos notificados à ACT. “Mesmo que vá ao centro de saúde, não ‘metem’ lá acidente de trabalho...”, descreve.

Andrea Araújo, da CGTP, reconhece que, “nos casos concretos, apenas por via da inspecção no local se pode fazer um bom trabalho, pois no papel tudo está bem”. Há também ainda “muito por fazer”, diz a dirigente, relativamente a exames médicos específicos para avaliar em que medida existe ou não aptidão física para este tipo de tarefas. E trabalhar com mais calor exige “medidas de protecção individual, alimentação e hidratação que passam à margem dos trabalhadores e que as empresas não aplicam, nem têm pessoal especializado, por exemplo, na área da nutrição, para permitir uma melhor adaptação fisiológica ao trabalho com calor”.

“Em termos legislativos, tem havido já grandes avanços no âmbito da segurança no trabalho, mas é uma coisa que se valoriza pouco”, nota Dario Ferreira, operador de ETAR de Alenquer, que é também dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Centro Sul e Regiões Autónomas (Site/CSRA). “Se for aplicada, a legislação em vigor tem muito impacto na vida dos trabalhadores, mas infelizmente não é uma prioridade das empresas. E, por falta de consciência e de formação, não é uma prioridade de muitos trabalhadores”, lamenta.

Francisco Franco, por seu lado, põe a tónica nas condições precárias de muitos trabalhadores, que os levam a aceitar trabalhar nestas condições. Há trabalhadores no sector agrícola que “não se importam de trabalhar mais de 15 horas para ganhar mais 20 euros”, conta. Mas isto pode trazer consequências graves para a saúde, a curto mas também a longo prazo. “Estão a hipotecar o futuro deles...”

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