O clima bate à porta da literatura portuguesa

A crise climática está a despertar a atenção de autores portugueses. Mas até que ponto a literatura que problematiza ou espelha questões ambientais pode produzir mudanças comportamentais?

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A literatura portuguesa está a começar a olhar para a crise climática, contando com exemplos tanto no romance como na poesia Gabriela Gómez
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Territórios inóspitos, assolados por inundações repentinas, secas intermináveis e temperaturas desumanas. Há algumas décadas que autores anglófonos imaginam mundos assim, em que a crise climática tem um papel central na narrativa. Em Portugal, esta preocupação literária ainda parece ser modesta, mas já conta com representantes tanto no romance como na poesia. Pode a literatura “salvar” a humanidade de uma catástrofe ambiental?

“Acredito que a literatura pode ser pedagógica, mas mais por consequência do que por premissa. Eu vou para um texto com perguntas, não com intenções. E até pode ser que as respostas às minhas perguntas suscitem nas pessoas lógicas motivacionais diferentes. Se assim for, óptimo. Mas não me sento a escrever um conto para explicar às pessoas que a transição energética é urgente”, diz ao Ípsilon a escritora Joana Bértholo.

A autora publicou recentemente Natureza Urbana (Relógio D’Água), um conto que explora como a linguagem pode (ou deveria) encurtar a distância entre as espécies, reavaliando o intervalo entre os humanos e os demais seres vivos. Em cerca de 60 páginas, o livro retoma um conceito essencial para compreendermos o estado de degradação ambiental a que chegámos: a separação entre os humanos e a natureza é um binómio falso, um equívoco linguístico.

“Sento-me para tentar perceber por que é que, com toda a evidência científica que temos ao nosso dispor, não estamos a fazer mais. Como é que nós nos dissociamos, como é que vemos as notícias e ainda assim não conseguimos passar para a acção. Quais são os processos emocionais em cada um de nós que justificam, ou propiciam, esta crise climática, esta estagnação, negação. Acho que estes são os meus problemas como ficcionista”, explica a romancista numa videochamada.

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A escritora Joana Bertholo publicou este ano Natureza Urbana, um livro que explora o diálogo entre o ser humano e as demais espécies MATILDE FIESCHI

Os questionamentos que Joana Bértholo convoca para a ficção são próximos da tradição da ecocrítica, uma disciplina que se consolidou nos anos 1990, com forte presença nos Estados Unidos. A ecocrítica investiga as relações entre a literatura e o meio físico, desafiando uma perspectiva dominante que coloca o humano no centro de tudo. Esta desmontagem do antropocentrismo pretende abrir caminho não só a um melhor entendimento entre os seres vivos (animais, vegetais e fungos), mas também à denúncia do extractivismo predatório.

Mundos com água a mais (e a menos)

O escritor e tradutor João Reis também se sente interpelado pela destruição do planeta provocada pela mão humana, transportando estas inquietações para os textos. Mas duvida de que a literatura possa ter impacto na acção climática.

“Tento ser crítico em relação aos problemas da humanidade, sei que há leitores que se sentiram aflitos ou angustiados ao ler o que escrevo. Mas, sinceramente, não acredito que um livro possa mudar comportamentos”, afirma João Reis, que publicou no ano passado o romance Cadernos da Água (Quetzal). Nesta distopia climática, o autor imagina um futuro no qual Portugal perde quase tudo: as águas dos rios ibéricos, a fertilidade dos solos e, por fim, a soberania.

O romance de João Reis não traz nenhuma inovação tecnológica, apenas amplifica o cenário actual de seca extrema e severa, projectando-o no futuro. A seca hidrológica faz emergir as “Guerras Meridionais da Água” e obriga uma parte significativa da população a transformar-se em refugiados climáticos no Norte da Europa. O objectivo da ficção especulativa, garante o autor, não é oferecer uma profecia – mas a possibilidade de imaginarmos um futuro sem água.

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O escritor João Reis imagina, em Cadernos da Água, um mundo distópico, assolado pela seca hidrológica, pelas guerras da água e pelo rescaldo de uma pandemia Nelson Garrido

Os cenários que João Reis descreve nem parecem tão distantes assim. Portugal enfrenta este ano condições de seca severa e extrema em cerca de um terço do território. Há produtores de gado a desfazerem-se de vacas porque já não conseguem alimentá-las. Já foram proibidas culturas permanentes que exigem muita água – como o olival, o abacate e os frutos vermelhos. Piscinas municipais do Algarve foram encerradas no último Verão para poupar água. A ficção especulativa parece aproximar-se cada vez mais da realidade.

Há cerca de 15 anos, o escritor Rui Cardoso Martins vislumbrou Lisboa sendo, uma vez mais, assolada por inundações e tremores de terra. Em Deixem Passar o Homem Invisível (2009, Dom Quixote), editado agora pela Tinta-da-china, expõe os subterrâneos de uma cidade profundamente transformada pela mão humana. Ao mesmo tempo que revisita antigos fenómenos naturais extremos – as cheias de 1967 e o terramoto de 1755 –, imagina um futuro próximo pouco auspicioso.

“Eu nasci em 1967. Foi um ano muito trágico, com as grandes cheias, que foram abafadas. Foi um bocadinho por causa disso que escrevi o livro: as consequências políticas de não ligarem aos fenómenos atmosféricos e à intervenção humana na natureza. Lisboa existe porque é um delta, um terreno muito fértil, mas que foi sendo sucessivamente conquistado. E, desde que apareceu o betão, fomos tapando todas as saídas. Esta é um pouco a história da crise climática”, explica Rui Cardoso Martins ao Ípsilon, numa conversa telefónica.

Mais de uma década separa os romances de João Reis e Rui Cardoso Martins. Entre a publicação de um e outro, aparentemente não proliferaram em Portugal exemplos de ficção climática – ao contrário do que se verifica na literatura anglo-saxónica, que chama cli-fi (climate fiction) a esta categoria. Sendo Portugal um território assolado pela seca, debruçado sobre um mar que não pára de subir, por que razão dedicamos poucas páginas à mudança do clima?

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Rui Cardoso Martins escreveu Deixem Passar o Homem Invisível inspirado pelo descaso político em relação às possíveis consequências de fenómenos atmosféricos Nuno Ferreira Santos

“A literatura portuguesa continua completamente alheia à questão da crise climática. O que vejo é um constante recalcar da Guerra Colonial. Há uma série de temas que se repetem na nossa ficção”, nota João Reis.

Joana Bértholo também se questiona sobre esta escassez. “É uma pergunta muito viva para mim, porque a minha sensibilidade tende justamente para estes temas [ligados ao clima e à nossa relação com a natureza, da qual fazemos parte.] E sinto que, por isso, os meus livros tendem a ser posicionados entre a ficção científica e a distopia”, comenta a autora de Ecologia (2018, Caminho).

A escritora recorda que, “culturalmente, Portugal leva algumas décadas de atraso em relação ao que se passa lá fora”. É o caso do debate pós-colonial que, em países como Inglaterra ou França, efervesceu há algumas décadas.

“Isto não é uma crítica nem um julgamento, é uma fase pela qual temos de passar. Essa literatura é essencialíssima, ainda não temos uma relação com a nossa História que esteja perto de estar resolvida. O protagonismo que esta literatura está a ter reflecte as nossas necessidades culturais neste momento. Não tenho uma perspectiva sobre tudo o que está a ser escrito em Portugal, mas não só sei que é escasso o que se propõe a esse nível [do clima e da nossa relação com as demais espécies] como sei que a recepção àquilo que eu proponho é boa. Ecologia é um romance muito bem recebido e gerou conversas muito pertinentes”, afirma Joana Bértholo.

Ecologia, que já foi descrito como uma fábula distópica, propõe aos leitores uma sociedade na qual existe um mercado da linguagem. Cada palavra dita é uma palavra paga, havendo preços distintos para cada vocábulo contemplado pelo Plano de Revalorização da Linguagem. A ideia de uma “taxa idiomática” nasceu do choque que Joana Bértholo sentiu ao perceber que havia empresas a patentear sementes agrícolas. Em causa está a privatização do embrião simbólico que, há milhões de anos, viabiliza a segurança alimentar de tantas espécies no planeta.

“A Monsanto, a Syngenta e a Bayer estavam a tentar criar um monopólio, um mercado, em torno de algo que, historicamente, os agricultores sempre tiveram e trocaram entre si de graça. O que faziam estas empresas? Mudavam uma característica genética da semente e usufruíam de direitos de propriedade intelectual. Foi aí talvez o choque que abalou a minha estrutura moral”, explica Joana Bértholo.

A ideia de privatização da vida (ou da sua promessa) conduziu, num longo processo criativo – que incluiu a leitura de textos da cientista e activista ambiental Vandana Shiva –, a esta ideia desconcertante de mercantilizar a linguagem, que é vista como um dos traços distintivos do homem em relação a outros animais.

Ecologia não se debruça directamente sobre as alterações climáticas, mas, ao discutir este ímpeto contínuo de criação de novos mercados, expõe a dinâmica socioeconómica que preencheu com carbono a única atmosfera que temos. E serve de antecâmara para Natureza Urbana e a discussão sobre o desentendimento entre espécies.

Uma força conservadora

O escritor e investigador Pedro Eiras, professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não se espanta ao ver a literatura resistir em identificar a crise climática. “A mesma literatura que desbrava tantos caminhos às vezes fecha-se e recusa-se a falar do agora”, afirma. E sublinha que, por vezes, há uma potência conservadora no domínio literário.

“Às vezes, a literatura vai à frente da realidade – a primeira vez que fomos à Lua foi com Júlio Verne, o que é curioso –, mas muitas vezes ela é conservadora. Porque é que os poemas levaram décadas até deixar o comboio entrar? Porque é que o comboio não tem direito a ser uma figura lírica? O comboio só surge como uma máquina interessante em si em Álvaro de Campos. Porque é que os poetas desaproveitam qualquer coisa que já está lá? Porque é que a literatura e a poesia lírica resistem tanto? Há um limite do vocabulário lírico que não permite abrir ao demasiado contemporâneo”, diz Pedro Eiras em conversa com o Ípsilon num café em Matosinhos.

E o que é que esta resistência diz de nós, culturalmente? “Enquanto países do Norte estavam a fazer as grandes descobertas da física e da química, nós estávamos a queimar cientistas nas fogueiras, sob pretexto de que eram bruxos. Um país que mata investigadores dificilmente será um país a escrever ficção científica. Países onde a ciência estava a florescer são aqueles que ganham escritores que especulam sobre os limites da ciência – como ir à Lua, descer ao fundo do mar ou dar a volta ao mundo em 80 dias”, argumenta o docente da Universidade do Porto.

Ao mesmo tempo em que admite uma resistência da literatura em abraçar o Antropoceno, Pedro Eiras identifica, no campo da poesia, a emergência de uma preocupação com o fim do mundo. O Antropoceno é um termo criado pelo químico holandês Paul Crutzen (1933-2021), que descreve o período histórico do planeta em que a acção humana se tornou a força motriz da degradação ambiental.

Pedro Eiras observa, num artigo publicado em 2021 numa revista internacional, que existe “um tom apocalíptico adoptado recentemente na poesia portuguesa”. Trata-se de textos que “explicitamente” anunciam, descrevem, desejam e “receiam o fim do mundo”. Esta tendência emergiria de “um sobressalto, um medo, a consciência dolorosa de uma fragilidade”.

“O ser humano contemporâneo parece fazer-se contra o universo em torno, contra os ecossistemas de que ele próprio depende. […] Mas a poesia portuguesa contemporânea parece cada vez mais sensível às alterações – profundas, radicais, irreversíveis? – que o próprio ser humano provoca no planeta. Dito de outro modo, a poesia torna-se testemunha do Antropoceno”, escreve Pedro Eiras no ensaio.

O Antropoceno na poesia

Entre os poemas portugueses que ilustram o colapso iminente está, por exemplo, Fim, de José Miguel Silva (in Últimos Poemas, 2017). É um texto que questiona o mito de progresso infinito, baseado na perpétua produção de bens e resíduos. Há uma estrofe que diz assim: “a nossa casa natural apodrecia / como o ventre das abelhas quando passa / o glifosato da ganância liberal.”

Nos versos de José Miguel Silva, já não há remediação possível. Resta apenas constatação do descalabro. Margarida Vale de Gato, num poema do livro Atirar para o Torto (2021, Tinta da China), retoma o tom apocalíptico comunicando que esta “galáxia cedo será brasa / nossa terra faúlhas”. Ainda assim, há um desejo de escrita. Continua-se a escrever diante do precipício, ainda que este acto criativo possa ser, ele mesmo, parte da engrenagem destrutiva.

No livro Alegria para o Fim do Mundo (2019, Porto Editora), de Andreia C. Faria, encontramos um poema que aponta o dedo para a contradição da escrita que denuncia o colapso do sistema terrestre. Incontáveis árvores são abatidas, esmagadas, para que a pasta de papel permita a impressão de textos. “É um pouco obsceno escrever livros / nos dias que correm”, escreve a autora no poema Antropoceno. “Que mais nenhuma árvore se descerre / para as folhas do poeta”.

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Andreia C. Faria, autora de Alegria para o Fim do Mundo, acredita que a poesia não deve ter a obrigação de ser um veículo de sensibilização climática Karin222/DR

Margarida Vale de Gato vê como crescente o interesse de autores lusófonos pelas questões climática e ambiental. “Cada vez acontece mais. Talvez ainda não tenha chegado aos círculos mais alargados”, refere a poetisa, que organizou com José Duarte o volume Natural in Verso (2015, Mariposa Azual), que reúne textos de autores portugueses e ingleses sobre escrita e acção ambiental.

“A poesia que se vira para as questões da ecopoética está muito focada também nas questões do ar e do mar, para nos levar a repensar os canais que podem limitar a nossa sobrevivência. Para mim, isto é entusiasmante e existe, embora admita que talvez estejamos numa bolha”, diz a poetisa, que também é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, numa conversa telefónica.

Margarida Vale de Gato dedica à filha, a activista climática Alice Gato, o poema Filhas do Clima, no qual fala da “desobediência das filhas bravias”, que “bloqueiam os acessos”, que se sentam nas encruzilhadas e “enfrentam a ordem de peito crescido”. Nesta luta ambiental levada a cabo por jovens, e apoiada por outras gerações, há espaço para uma centelha de esperança: “Acreditámos ser só uma questão de tempo / para o amor ou o reconhecimento ou a prece // ou a frugalidade ou a ciência dar os seus frutos / para o pior ser sonho ou susto de momento”.

A poesia até pode oferecer um substrato de esperança, construir um território onde medos e ansiedades podem ser trabalhados. Mas cabe à literatura incitar à acção climática? Desbravar caminho para mudanças de estilos de vida e modelos de produção? Em suma, podem os textos salvar a humanidade de si mesma?

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Para a escritora Margarida Vale de Gato, a poesia "não salva", mas pode "mitigar" sentimentos como o medo ou o desespero face ao risco de extinção Enric Vives-Rubio/Arquivo

Acho que a poesia não salva. A poesia mitiga, ou, idealmente, inquieta. É até perigoso pensar em salvação porque, mais uma vez, é dar demasiada importância à linguagem como um traço humano distintivo. Mas, sim, pode ser usada como instrumento social. A poesia coloca questões. A ideia da poesia como serviço é um pouco utilitária e exige alguma cautela. Agora, a crise climática é um tema dos nossos dias, é uma das questões que mais contribuem para o medo actual, para os jovens e para os adultos conscientes. Se a poesia é um sítio para jogarmos com ansiedades e crises, é claro que a crise climática aparecerá ali”, argumenta Margarida Vale de Gato.

Andreia C. Faria também rejeita a ideia da literatura como serviço. “Não acredito numa obrigatoriedade de tratar poeticamente este ou qualquer outro assunto. Isso tornaria os poemas meros exercícios sem fundamento na experiência, e o poeta converter-se-ia em presa das modas do momento ou num propagandista – fazendo, além do mais, um mau serviço à causa”, afirma a autora de Alegria para o Fim do Mundo, numa resposta enviada por email.

A poetisa recorda que, nesta era pós-carbono em que vivemos, todos sabemos que vamos enfrentar fenómenos naturais e sociais “violentos” nos anos vindouros, situações de tensão, escassez ou vulnerabilidade directa ou indirectamente ligadas à crise climática. “Se esse conhecimento for suficientemente ‘disruptivo’ e criar alicerces na mundividência de quem escreve, naturalmente fará nascer no trabalho poético uma linguagem própria”, acredita Andreia C. Faria.

Testar o poder da ecocrítica

Desde meados dos anos 1990, a literatura que privilegia questões relacionadas com a crise climática começou a despontar no mercado editorial de língua inglesa. A tendência popularizou-se a partir de 2013, refere o investigador norte-americano Matthew Schneider-Mayerson, docente no Colby College. Para o académico especializado em literatura ambiental, este interesse reside, pelo menos em parte, no facto de a mudança do clima ser algo que as pessoas já estão – literalmente – a sentir na pele.

Um em cada três adultos nos Estados Unidos afirma, por exemplo, ter sido directamente afectado por um fenómeno climático extremo. Furacões, tempestade de gelo, nevascas e vagas de frio estão entre as experiências relatadas por mais de mil participantes em 2022 à empresa de sondagens Gallup.

A temperatura média da Terra continua a subir. Só na semana passada, foram registados três recordes, com valores médios globais acima dos 17 graus Celsius. O mês de Junho foi o mais quente de sempre ao nível planetário, e o quinto mais quente em Portugal desde que há registos, de acordo com dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. E o Verão, que agora atravessamos, já começou uma onda de calor. Apesar de todos estes sinais claros, mais de 90% das promessas climáticas dos países “não são credíveis”. Resta aos que estão genuinamente preocupados o activismo e a sensibilização.

A ficção climática também tem sido impulsionada pela ideia de sensibilização. Em 2005, o jornalista e activista climático Bill McKibben escreveu um famoso artigo na plataforma Grist a defender que aquilo de que um planeta a arder mais precisa é arte. Livros, poemas, canções, óperas e peças de teatro sobre a crise climática.

“O tempo avança de uma maneira que os humanos nunca antes contemplaram. Aquela famosa imagem da Terra do espaço sideral que a Apollo transmitiu no final dos anos 1960 já não é o mundo em que habitamos; os pólos estão a derreter, o nível dos oceanos a subir. Podemos registar o que está a acontecer com satélites e instrumentos científicos, mas podemos registar na nossa imaginação, o mais sensível de todos os nossos dispositivos?”, questionava o autor de The End of Nature (1989), considerado o primeiro livro de divulgação científica sobre a crise climática.

O raciocínio proposto por McKibben (e outros autores) é mais ou menos este: através da incorporação de temas urgentes nas narrativas, os autores estariam de alguma forma a contribuir para políticas e atitudes amigas do ambiente. O investigador Matthew Schneider-Mayerson entendeu que esta lógica deveria ser testada cientificamente. Não se pode inferir uma influência positiva nos leitores se, na prática, nunca foi feito um estudo experimental sobre o tema.

Para colmatar esta lacuna, Schneider-Mayerson conduziu há cinco anos um estudo envolvendo 161 leitores de ficção climática. Os participantes liam contos disponíveis online e, depois, respondiam a questões relacionadas com clima e ambiente.

O trabalho considerava a resposta psicológica, intelectual, emocional e até comportamental dos leitores, produzindo uma investigação que abre caminho para aquilo a que o académico chama “ecocrítica empírica”, ou seja, “uma abordagem interdisciplinar à narrativa ambiental baseada em dados empíricos”.

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O investigador Matthew Schneider-Mayerson conduziu "o primeiro estudo empírico sobre o impacto dos textos climáticos na atitude dos leitores" DR

“Conduzimos o primeiro estudo empírico sobre o impacto dos textos climáticos na atitude dos leitores. É algo sobre muita gente especulou, mas não há muitos estudos sistemáticos e empíricos sobre o tema. Demonstrámos que há, de facto, este impacto nos leitores no que toca a certas atitudes e crenças ligadas ao aquecimento global. Contudo, também percebemos que este efeito tende a diminuir, deixando de ter significância estatística após um mês. Isto não significa que estes efeitos desapareceram completamente”, explicou Schneider-Mayerson, numa videochamada a partir dos Estados Unidos.

Uma cascata de narrativas

O estudo publicado na revista científica Environmental Humanities centrava-se em contos, um género literário que tende a exigir menos investimento do leitor. E que talvez tenha um menor impacto a longo prazo do que a leitura de um romance, por exemplo, onde a psicologia das personagens pode ser mais desenvolvida. (Na perspectiva de Schneider-Mayerson, a literatura climática é uma categoria – e não um género – na qual a mudança do clima ocupa um papel relevante num texto literário, seja ele curto ou longo, ficção ou poesia.)

“Uma das limitações deste estudo é que está focado num único tipo de estímulo, quando, na verdade, os seres humanos são bombardeados todos os dias por uma miríade de estímulos – notícias, filmes, canções, podcasts, conversas, séries da Netflix. Nesse contexto, não me surpreende que a leitura de um conto tenha um impacto que não dura mais do que um mês”, argumenta Schneider-Mayerson, que está neste momento a desenhar novos estudos empíricos na área da ecocrítica.

Por outras palavras, não precisamos apenas de mais literatura climática. É necessário que a conversa sobre a crise climática se infiltre nos diferentes produtos culturais que consumimos todos os dias.

“Nós, investigadores, não estamos atrás de uma medida mágica que mude a atitude de todas as pessoas, não acreditamos numa narrativa que mude completamente a forma como as pessoas vêem a crise climática. O que nós precisamos é de uma cascata de narrativas, diversos estímulos sendo oferecidos com frequência, para que o efeito seja duradouro”, defende o investigador norte-americano.

Quanto mais presente a conversa climática estiver na esfera cultural, maior será o impacto, acredita Schneider-Mayerson. Esta desejável “cascata de narrativas” actuaria em várias vertentes, propiciando espaços de comunicação de ciência, informação jornalística, pensamento crítico, questionamento da própria linguagem e até o tratamento de emoções que ainda não sabemos bem nomear.

Narrar para adiar o fim do mundo

“Estou completamente convencido de que temos que mudar as nossas práticas ficcionais para lidar com o mundo em que estamos”, afirmou ao The New York Times o escritor Amitav Ghosh, autor de Gun Island. No livro de ensaio The Great Derangement, o autor, que já testemunhou um tornado e uma chuva de granizo em Nova Deli, onde estudou nos anos 1970, conta como teve dificuldade em narrar eventos improváveis na ficção sem que estes pareçam inverosímeis. A própria linguagem literária está a adaptar-se às alterações climáticas: as narrativas esforçam-se por ampliar as combinações possíveis para descrever, e pensar, o mundo diminuído em que viveremos.

Mudanças no termómetro, na disponibilidade de recursos e na própria paisagem podem desencadear sentimentos de perda, medo, ansiedade e até confusão. Ver a praia de infância engolida pelo mar, ou a própria cidade destruída por uma inundação sem precedentes, pode representar, para muitos, uma experiência de luto. A literatura que espelha estas transformações inaugura muitas vezes um território onde os leitores podem trabalhar estas emoções.

Os textos literários também podem ser um caminho para não deixar a humanidade cair no desespero da extinção, observa Margarida Vale de Gato, porque enquanto houver o desejo de narrar também haverá esperança. Contudo, sem políticas concretas de acção climática – de carácter urgente e global –, não se pode esperar milagres dos livros.

“Há um autor de que gosto muito – William Faulkner – que diz, num ensaio, que o mundo pode estar quase a acabar, mas, enquanto houver uma história para contar, há um homem a falar com outro e a imaginar uma embarcação qualquer para os tirar de lá. É como Xerazade, mais uma história para contar, mais uma oportunidade de imaginar alternativas quando tudo é muito difícil. Mas não podemos depositar todas as esperanças na literatura, o que é preciso é acção política concertada”, avisa Margarida Vale de Gato.

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