Luís de Carvalho: um olhar pela vitivinicultura de Portugal e cinco ideias para o futuro

Aos 77 anos, é um viticólogo desconhecido dos consumidores, mas muito respeitado no sector. Hoje, com os filhos, faz experiências na Quinta do Lagar Novo, Alenquer. O seu testemunho.

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Luís de Carvalho, produtor de vinho e proprietário da Quinta do Lagar do Novo Rui Gaudêncio
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Vão longe os meus tempos de criança, quando comecei a olhar a renovada paisagem das vinhas, decorriam os primeiros anos da década de 50 do século passado e aproximava-se a recuperação plena das áreas derrotadas pela crise filoxérica.

As vinhas de então eram significativamente diferentes —​ pelas castas utilizadas, pelas densidades de plantação, enfim, pela tecnologia cultural dominante.

Para a plantação de novas vinhas, faziam-se as surribas, ou saibramentos — cavas, feitas por esforçados trabalhadores, que atingiam 1,2m de profundidade. Depois plantava-se o porta-enxerto, em compassos de quadrícula próxima de 7x7 palmos (1,40 x 1,40 m) e densidades de plantação da ordem das 5000 a 7000 videiras por hectare. Por fim, a enxertia feita no local utilizava garfos em mistura de castas – por vezes incluindo brancas com tintas.

Em Alenquer, como por todo o país, não se dava então grande importância ao factor casta; privilegiava-se a origem e o mérito da vinha mãe quanto às uvas que produzia e aos vinhos que originava. Predominavam entre as castas brancas a Fernão Pires, Vital, Jampal e, em menor escala, Diagalves, Alicante Branco e outras. Entre as castas tintas, Castelão, Trincadeira Preta, Camarate e Tinta Miúda eram as mais representadas, mas existiam também Parreira Matias, Preto Martinho, Grand Noir, Alicante Bouschet, Tinturier.

O sistema de condução era em forma livre – taça, com poda mista ou longa e empa em argola com asa de mosca; as vinhas não eram aramadas e a sustentação da vegetação fazia-se com tutores individuais de paus de pinho ou canas.

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"Eram tempos difíceis — tudo feito à mão, mas a tempo e horas, por oferta abundante de trabalhadores rurais." Maria João Gala

As fertilizações eram escassas e raras, utilizando-se esporadicamente estrumes, sulfato de amónio e fosfatos — enterrados em covas abertas à enxada, entre cada quatro cepas. A mobilização do solo compreendia duas operações: cava, feita no final do Inverno e no caso de algumas das grandes explorações, lavoura, utilizando tracção animal; mais tarde, passadas as grandes chuvas, em Abril/ Maio era feita uma segunda mobilização – raspa, mais superficial, para controlo da vegetação infestante e esmiuçamento da estrutura dos solos. Os tratamentos fitossanitários resumiam-se ao combate preventivo do míldio, com a aplicação, em pulverização manual, de calda bordalesa a 2% e do oídio com flor de enxofre em pó.

Eram tempos difíceis — tudo feito à mão, mas a tempo e horas, por oferta abundante de trabalhadores rurais.

Mas o tempo não pára e, a partir dos anos sessenta do século passado, o progresso científico e tecnológico do sector acelerou-se e registou tal incremento que a paisagem dos vinhedos actuais certamente causaria a maior das admirações aos contemporâneos da geração dos meus pais, se cá voltassem e trilhassem o caminho das vinhas que tinham deixado.

Fomos espectador, aqui e além activo, desse progresso do sector e numa visão crítica do caminho percorrido, assinalamos, como mais importantes, a mecanização da quase totalidade das operações culturais na vinha, mormente plantação e vindima; recuperação de maiores densidades de plantação, entretanto diminuídas em favor de prioridades da mecanização; aramação das vinhas e sistemas de condução das videiras presas aos arames; alteração profunda dos encepamentos, privilegiando castas de maior mérito enológico em acordo com as tendências do consumo; utilização de melhor material de propagação vegetativa: bacelos certificados, garfos de castas geneticamente seleccionadas e, em alguns muito meritórios casos, a recuperação de castas quase desaparecidas e em vias de extinção; alteração radical da tecnologia e dos equipamentos enológicos, nas adegas, permitindo agora muito menor número de "acidentes” de percurso, higiene segura e extrair das uvas toda a bondade das suas performances qualitativas, para produção de vinhos superiores.

O maior feito no âmbito da vitivinicultura nacional é, reconhecidamente, o trabalho inovador de selecção policlonal do acervo das castas tradicionais portuguesas e da conservação do seu património genético. Um trabalho que nos últimos 46 anos, por iniciativa e direcção brilhantes do professor Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia, varreu o país de lés-a-lés na procura, selecção e conservação do dito património. Tal trabalho vem, finalmente, merecendo grande reconhecimento e adopção por parte das mais altas instâncias internacionais do saber vitivinícola. Tivemos a felicidade e a honra de dar pequeníssimo contributo neste trabalho, que congregou a participação de inúmeros e voluntariosos técnicos de todas as instituições do sector e regiões do país.

Profissionalmente, sentimo-nos hoje, no nosso querido Portugal, de alma cheia – tal foi a melhoria experimentada, função do bom caminho seguido na vinha, na adega e no comércio externo. Mas, embora achando que vamos no bom caminho, temos um sentimento de que é necessário acelerar – digamos que vamos a 30 km/ h e que, em vista da concorrência, precisamos de atingir a velocidade máxima permitida.

Imagino que seria crucial empreender novas estratégias de produção, baseadas em processos técnico-científicos testados e de validade confirmada, visando a conservação da natureza no respeito pelos ecossistemas e pelo homem – fazedor de uvas e vinhos e consumidor.

Eis cinco ideias:

  1. É a todos os títulos imprescindível que, no domínio da protecção sanitária e controlo das infestantes concorrentes, se incentivem procedimentos culturais promotores de equilíbrios naturais, necessários a uma luta biológica desfavorável aos inimigos das videiras.
  2. Das grandes multinacionais, deseja-se que, num futuro próximo, sejam compelidas a produzirem substâncias e produtos alternativos – eficazes, mas não prejudiciais para a cultura, para o utilizador e para a fauna e flora.
  3. Não faz sentido que a PORVID disponha de materiais de superior qualidade de centenas de castas autóctones seleccionadas e que a viticultura não esteja já a usufruir dessa diversidade. Torna-se imperioso que a actividade viveirista de plantas de vinha alargue significativamente a oferta de materiais policlonais das castas em uso (na moda) bem como disponibilize outras —​ das tais caídas em desuso.
  4. Urge que entidades do sector – públicas e privadas (Ministério da Agricultura, universidades e institutos politécnicos, CVR, associações de viticultores e outros), conjuguem esforços e se aproximem dos viticultores, incentivando forte exploração da magnífica riqueza das originalidades portuguesas, expressas em terroirs tão favoráveis e diversos, saber e tradições ancestrais, património varietal, etc…
  5. Todos aqueles que lutam pela qualidade, diferença e originalidade dos seus vinhos, de forma objectiva e consistente, sejam ouvidos, estimulados e tenham acesso a ajudas e PRR.
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