Trinta personalidades portuguesas, entre cientistas, políticos, artistas, surfistas e defensores do ambiente, assinam uma carta aberta ao Governo português, apelando a que declare uma moratória contra a mineração em mar profundo nas águas sob jurisdição nacional. “Mas também que defenda na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) uma moratória internacional”, explicou Ana Matias, da organização não-governamental Sciaena.
“A mineração comercial em mar profundo é uma potencial nova actividade industrial que implica a extracção de minerais através da raspagem, corte, apanha ou dragagem dos depósitos minerais do fundo do mar”, explica a carta, disponibilizada online.
“Esta actividade destina-se a extrair minerais como cobre, cobalto, manganês e terras raras, com máquinas gigantescas a operar em condições muito adversas e arriscadas, destruindo localmente ecossistemas e perturbando outros a largas centenas de quilómetros em redor”, continua o documento dirigido ao Governo português e assinado por nomes tão variados como Ana Colaço, especialista em ecologia do mar profundo, os ex-ministros com a pasta do Mar Assunção Cristas e Ricardo Serrão Santos, ou o fotógrafo subaquático Nuno Sá e o surfista Miguel Blanco.
Sabe-se ainda muito pouco sobre o impacto que teria esta actividade mineira no oceano e nos ecossistemas marinhos. “O conhecimento sobre águas profundas é ainda insuficiente, tendo sido estudados menos de 5% destes ecossistemas únicos, tornando impossível determinar os limiares em que esta actividade poderá operar sem impactos negativos significativos para a biodiversidade”, diz a carta, cuja elaboração foi promovida pela Sciaena e pela Associação Natureza Portugal/WWF (ANF/WWF).
A carta pede ao Governo português que siga o exemplo de outros países (Alemanha, França, Espanha, Canadá, Nova Zelândia, Chile, Costa Rica, Equador, Panamá, Palau, Fiji, Micronésia, Samoa) e aplique o princípio da precaução, declarando uma moratória sobre a mineração no leito do mar nas águas sob jurisdição nacional.
Essa posição deve ser defendida nas próximas reuniões da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA na sigla em inglês) em Março e Julho de 2023, defendem os signatários. Trata-se de uma organização internacional com sede na Jamaica que tem 167 Estados-membros (mais a União Europeia) e que é mandatada, ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, “para organizar, regular e controlar todas as actividades relacionadas com a exploração de minerais nos fundos marinhos”.
O fim do prazo de dois anos
“Estas são a últimas reuniões antes do fim do prazo dos dois anos, daí a urgência”, diz Ana Matias. O que é este prazo de dois anos? “É uma disposição no âmbito da Convenção do Direito do Mar, que diz, de uma forma simples, que a partir do momento em que um Estado-membro da ISA declara a intenção de avançar com a mineração em mar profundo, a Autoridade fica com dois anos para desenvolver regulamentações que permitam que a actividade decorra”, explica.
Essa regra foi activada por Nauru, um Estado-ilha do Pacífico Central, em Junho de 2021. “A partir desse momento, começaram a contar os dois anos, que acabam agora em Junho de 2023. Por isso é que estamos nesta corrida, para que mais países declarem o seu apoio a uma moratória internacional”, justifica Ana Matias. Porque se podem escancarar as portas à mineração em mar profundo em breve.
Portugal é livre de declarar unilateralmente uma moratória sobre esta actividade nas águas sobre as quais tem jurisdição. “E pode depois, a seguir, ou ao mesmo tempo, defender uma moratória internacional”, sugere a especialista da associação Sciaena.
A moratória sobre a mineração em mar profundo em águas portuguesas ganha especial urgência, pois a zona do arquipélago dos Açores, onde há ecossistemas ricos em biodiversidade como fontes hidrotermais ou montes submarinos, seria a primeira candidata a prospecção, avisam a Sciaena e a ANF/WWF.
O secretário regional do Mar e das Pescas dos Açores, Manuel São João, disse, num debate esta semana promovido pela Sciaena, concordar com uma moratória, pelo menos a nível local. “A mineração do mar profundo nesta região, com os alertas em uníssono da comunidade científica, é incompatível com o que desejamos e defendemos para o maior património dos Açores: o nosso mar”, disse o governante, citado pela Lusa.
Manuel São João disse que faz todo o sentido que seja criada uma moratória regional nos Açores. “Entendemos como adequada uma moratória regional, à semelhança do que tem sucedido com outras regiões, nomeadamente, as Canárias, que, além de um limite temporal, faça depender de um grau de conhecimento científico que acautele o ambiente marinho”, advertiu o secretário regional do Mar e das Pescas.
Portugal assinou, juntamente com os outros países da União Europeia, uma declaração que foi levada ao plenário final da 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15), em Dezembro passado, em Montreal, Canadá. O documento “convidava outros governos a garantir que, antes de se iniciar a mineração no mar profundo, devem ser suficientemente investigados os impactos no ambiente e biodiversidade marinhos, e compreendidos os riscos”.
Investigação ou prospecção?
Porém, há países que decretaram uma moratória para a mineração no mar profundo nas suas águas e que estão a fazer prospecção dos fundos marinhos noutras zonas do planeta. Por exemplo, os deputados franceses aprovaram já este ano essa moratória. Mas o Instituto Francês de Investigação para a Exploração do Mar (Ifremer) renovou, no fim de Fevereiro, por mais cinco anos, um contrato assinado desde 2001 com a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos para a exploração da zona Clarion-Clipperton.
Trata-se de uma área de 4,5 milhões de quilómetros quadrados entre o Havai e o México, no oceano Pacífico, uma planície abissal da dimensão dos Estados Unidos, cujos fundos são ricos em nódulos polimetálicos. Estas rochas, do tamanho de batatas, são depósitos de níquel, manganês, cobre, zinco, cobalto e outros minerais, e são o principal alvo da actividade de mineração no mar profundo.
Não há uma contradição aqui? “Sim, esta questão já surgiu: ‘Porque é que estão a defender uma moratória em águas internacionais, se não abdicam dos contratos?’”, diz Ana Matias. A ISA atribuiu já 31 contratos de 15 anos para a exploração com 22 empresas, e esses contratos têm países patrocinadores variados, tais como China, Rússia, França, Alemanha, Tonga, Nauru, para mencionar apenas alguns.
O que os países que declaram moratórias defendem é que estes contratos sejam transformados em contratos de investigação marinha, “que não permitam a exploração comercial de mineração em mar profundo”, diz Ana Matias. “Obviamente que isto pode ter várias interpretações, mas estes países também advogam que, se eles abdicarem dos contratos deles, ficarão mais concessões disponíveis para outros países fazerem mineração em mar profundo”, explica.
Isto é o que tem sido dito até agora. “Mas só muito recentemente é que tanto a França como a Alemanha declararam intenção de impor uma moratória. Não sei se vai ser discutido na reunião de Março, ou qual vai ser a mensagem divulgada”, reconhece Ana Matias.
Mas para Portugal tudo seria mais simples, defende. “Para Portugal, seria mais fácil, porque o Governo português não tem nenhum contrato de concessão atribuído”, salienta Ana Matias. O pedido destas organizações e dos signatários da carta é este: “Queremos que o Governo português tome uma posição dupla: que declare uma moratória nas águas sob jurisdição nacional, mas também que defenda na ISA uma moratória internacional.”
Noutras ocasiões recentes, quando questionado, o ministro da Economia e do Mar, Costa e Silva, rejeitou a possibilidade de uma aposta na mineração do mar profundo. “A mineração do mar profundo não é uma questão que podemos colocar hoje, porque isso está completamente afastado nas próximas décadas. Nós não sabemos muito bem como funciona o mar. Conhecemos 5% do mar. Temos de conhecer as dinâmicas dos oceanos”, disse em Julho, na Universidade dos Açores, citado pela Lusa.