Bebé recebe uma das terapias mais caras do mundo, mas não vai a tempo de salvar irmã

Bebé de 19 meses é tratada com terapia genética para uma doença rara – a leucodistrofia metacromática –, que na forma infantil é fatal até aos cinco anos. Terapia custa mais de três milhões de euros.

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A maioria das crianças com esta doença neurodegenerativa morre antes de completar cinco anos Lukasz Gagulski/EPA

Há menos de um ano, Teddi Shaw foi diagnosticada com leucodistrofia metacromática, uma doença rara e fatal que ataca o cérebro das crianças. Agora, aos 19 meses de idade, é a primeira criança a ser tratada com uma nova terapia disponível no Reino Unido, conta a televisão britânica BBC.

É o tratamento mais caro disponibilizado no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS, na sigla em inglês): chama-se Libmeldy e custa mais de três milhões de euros. É uma terapia de dose única que tem permitido a outras crianças do Reino Unido continuar a viver mesmo com esta doença rara, que afecta gradualmente o movimento e destrói o sistema nervoso central.

Durante uma década, desde 2010, o Libmeldy foi submetido a ensaios clínicos em humanos, que conduziram à aprovação pela Agência Europeia do Medicamento no final de 2020. No ano passado, o NHS aprovou a sua disponibilização no serviço público britânico. Apesar de ainda não existirem certezas sobre se esta é uma cura, os resultados positivos em quem testou esta terapia são bons indícios. “Durante décadas, não tínhamos nada para oferecer às famílias com este problema. Em vez de vários anos de uma doença neurodegenerativa terrível, temos agora o potencial de uma vida completa e saudável”, diz Simon Jones, médico e investigador envolvido no desenvolvimento do tratamento, em declarações à BBC.

A família de Teddi Shaw era uma das mencionadas por Simon Jones. O diagnóstico precoce da bebé de 19 meses só foi possível graças à irmã mais velha, Nala. Há cerca de um ano, Nala começou a cair com mais frequência e a ter tremores, o que motivou a ida às urgências. O diagnóstico foi esta doença rara e desconhecida: a leucodistrofia metacromática. A irmã, Teddi, tinha 25% de hipóteses de também ter esta doença – e confirmaram-se.

As crianças com a doença nascem aparentemente saudáveis e só passado alguns meses começam a desenvolver sintomas, como a descoordenação motora ou os tremores, por exemplo. Por não haver cura, o prognóstico é desfavorável: a maioria das crianças com esta doença na sua forma infantil morre antes de completar cinco anos.

Que tratamento é este?

Não há cura, mas este tratamento traz notícias positivas para quem é diagnosticado precocemente com a doença – outro dos desafios que terá de ser ultrapassado. “Estamos a deixar as nossas crianças para trás ao não rastrear estes problemas devastadores, porque é possível evitá-los se a doença for identificada logo ao nascimento”, explica à BBC Bobby Gaspar, responsável pela Orchard Therapeutics, empresa que desenvolveu o Libmeldy.

A leucodistrofia metacromática é desencadeada por um gene defeituoso, que impede as crianças afectadas de produzir uma enzima chamada ARSA, importante para ajudar o metabolismo do nosso corpo a funcionar. Sem isto, há uma acumulação de sulfatídeos (substâncias químicas gordurosas) que é tóxica para as células do cérebro e o sistema nervoso. Como resultado, os doentes perdem a capacidade de andar, falar, comer e, depois, de ver ou ouvir.

O que o Libmeldy faz é alterar os glóbulos vermelhos do paciente para corrigir este gene defeituoso. Recuperando o processo descrito pela BBC, foram recolhidas células estaminais no sangue de Teddi Shaw, um procedimento realizado no Hospital Pediátrico Real de Manchester. As células estaminais, que foram retiradas da medula óssea, seguiram para Milão, onde os cientistas utilizaram um vírus que não é perigoso para substituir o gene defeituoso por um perfeitamente funcional.

As células estaminais com o “gene corrigido” regressaram a Manchester e foram reinseridas na criança britânica. Estas células vão depois começar a produzir glóbulos vermelhos que já contêm a enzima ARSA, que estava em falta. Apesar de parecer simples, antes de receber esta terapia, Teddi Shaw teve de fazer quimioterapia para matar as células defeituosas que ainda permaneciam na medula óssea.

O Libmeldy deve ser administrado antes de a doença causar danos irreparáveis nas células do cérebro e no sistema nervoso, o que impediu a irmã mais velha de Teddi de poder receber o tratamento. Nala Shaw já não consegue falar ou andar, sendo agora alimentada através de uma sonda, conta a BBC.

Alguns dos medicamentos mais caros do mundo

O medicamento dado a Teddi Shaw nem chega a ser o mais caro do mundo. Os motivos para os elevados preços destes tratamentos, sobretudo em doenças raras, são recorrentemente elencados: a cobertura dos custos de investigação científica, desenvolvimento e de produção. Além disso, como este não é um problema que afecte milhões de pessoas, não existe uma produção em grande escala que permita reduzir os valores praticados. Vejamos uma lista de medicamentos muito caros.

  • O Libmeldy é o tratamento mais caro no Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, no valor de 3,1 milhões de euros, mas não o é no mundo. O fármaco Hemgenix foi aprovado em Dezembro de 2022 nos Estados Unidos para tratar adultos com hemofilia B e custa 3,3 milhões de euros.
  • Ligeiramente abaixo, com um custo de 2,84 milhões de euros, o Skysona era até há bem pouco tempo o medicamento mais caro do mundo. É usado para tratar a adrenoleucodistrofia, uma doença rara que destrói o invólucro protector das células nervosas (a mielina).
  • Em seguida, aparece o Zynteglo, um medicamento utilizado no tratamento da beta-talassemia, uma doença rara do sangue, e que custa cerca de 2,65 milhões de euros.
  • Outro medicamento que entra nestas contas é o Zolgensma, que ganhou destaque em Portugal devido ao apelo dos pais da bebé Matilde, que sofria de atrofia muscular espinhal na sua forma mais grave. O medicamento, à época o mais caro do mundo, custa quase dois milhões de euros.
  • Em Portugal, o caso de Constança Bradell (que morreu em 2021) também se tornou conhecido pelos preços do tratamento. Neste caso era o Kaftrio, um tratamento anual com um custo de 140 mil euros, o único eficaz na maioria dos doentes com fibrose quística, uma doença genética que afecta sobretudo os pulmões.

A mobilização para garantir o acesso a medicamentos com grandes custos não é nova. Por exemplo, em 2015, José Saldanha apelava no Parlamento, dirigido ao então ministro da Saúde, Paulo Macedo: “Não me deixe morrer”, face à espera por um fármaco para tratar a hepatite C. José Saldanha viria a morrer em 2020, mas, dois dias depois da sua intervenção na comissão parlamentar de Saúde, o Estado anunciou o acordo para a disponibilização gratuita dos tratamentos com Sofosbuvir, cujo preço pedido inicialmente pela empresa farmacêutica Gilead superava os 40 mil euros.

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