Rose Abramoff: a cientista que fez um protesto climático e depois foi demitida

Norte-americana interrompeu um influente encontro de cientistas para apelar a que estes sejam mais activistas. O seu laboratório despediu-a, mas Rose diz ao PÚBLICO que não se arrepende.

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Rose foi demitida do Laboratório Nacional de Oak Ridge, que diz que ela, ao ter feito um protesto climático em contexto de trabalho, usou fundos públicos indevidamente DR

Rose Abramoff é uma cientista americana. Costumava trabalhar no Laboratório Nacional de Oak Ridge (ORNL), no estado do Tennessee. Até que protagonizou um breve e pacífico protesto climático que lhe custou o emprego. “É engraçado: seria de se pensar que, tendo sido despedida, ficaria com medo de me manifestar no futuro. Mas a verdade é que me sinto ainda mais encorajada, porque vejo que a reacção de solidariedade tem sido muito forte”, conta ao PÚBLICO a especialista em temas como alterações climáticas, biogeoquímica e ecologia florestal.

No passado 15 de Dezembro, Rose Abramoff e Peter Kalmus, cientista da NASA, foram expulsos do importante “Encontro de Outono” (Fall Meeting) da American Geophysical Union (AGU), organização sem fins lucrativos com cerca de 60 mil membros. O “Encontro de Outono” da AGU, que se realiza anualmente, juntando milhares de pessoas (entre investigadores, estudantes, formuladores de políticas e jornalistas), é uma conferência reputada, um evento muito influente dedicado ao avanço das ciências da Terra e do espaço.

Abramoff e Kalmus foram expulsos porque subiram ao palco a meio de uma apresentação para mostrar à plateia uma faixa que dizia: “Out of the lab and into the streets.” (“Fora do laboratório; [vamos] para as ruas.”)

Foi um protesto incómodo, todavia pacífico, de dois cientistas que queriam convencer os muitos colegas de profissão que ali estavam a se envolverem mais com activismo climático. Abramoff e Kalmus estão associados ao Scientist Rebellion (SR), grupo internacional de cientistas que nos últimos tempos têm organizado diversas acções de desobediência civil.

Estes cientistas são da opinião de que, se querem tornar mais forte o seu combate à crise do clima, não podem continuar a fazer apenas e só aquilo que têm feito este tempo todo (realizar trabalho de laboratório, escrever artigos científicos, rever estudos de pares, etc.); precisam de sair à rua e levantar a voz.

O protesto de Abramoff e Kalmus durou poucos segundos. A faixa foi retirada das suas mãos e os dois foram mandados embora do auditório. Até aqui, tudo dentro daquilo que os cientistas imaginaram previamente que aconteceria. Surpreendeu-os, isso sim, o que se aconteceu depois disso.

Para começar, as intervenções de Abramoff e Kalmus no “Encontro de Outono” da AGU, onde apresentaram trabalho de investigação, acabaram por ser retiradas do programa. Depois, o ORNL demitiu Rose Abramoff, pondo fim a uma relação profissional de cerca de um ano.

Segundo a cientista, que escreveu no jornal norte-americano The New York Times um artigo de opinião em que detalha aquilo que lhe aconteceu, ela foi despedida porque desrespeitou o “Código de Ética Empresarial e Conduta” do ORNL. Abramoff diz que este código versa sobre “integridade científica, manter a reputação da instituição e usar recursos do Governo [dos Estados Unidos] ‘somente conforme [aquilo que for] autorizado e apropriado’” (o ORNL é financiado pelo Departamento de Energia dos EUA). Uma vez que Rose realizou uma actividade pessoal no meio de uma viagem de trabalho, ela terá, na perspectiva do ORNL, feito uso indevido de dinheiros públicos.

Ao PÚBLICO, a cientista refere “entender” a decisão do laboratório, que, diz, “não quer ser associado” a tomadas de posição políticas. “Mas não acho que falar sobre quão grave é a crise climática seja algo político. Dizer que temos de parar de queimar combustíveis fósseis não é algo político”, entende.

Cientistas desobedientes, a inspiração de Rose

Entre o final de 2018 e o final de 2021, Rose Abramoff viveu em França, onde, admite, sempre teve algum “medo” de participar em protestos climáticos mais disruptivos. “Não sabia bem o que poderia acontecer ao meu visto caso fosse detida por desobediência civil”, explica.

Quando estava a regressar aos EUA, para integrar a equipa do ORNL, a cientista viu nas notícias os protestos que o grupo Scientist Rebellion organizou em Glasgow durante a Cimeira do Clima de 2021 (COP26), que decorreu nessa mesma cidade escocesa. Ao sétimo de 14 dias da COP26, um grupo de cientistas bloqueou uma ponte, o que levou a várias detenções.​

Este foi um protesto impactante para Rose. “Por norma, os cientistas são bem mais discretos. O facto de naquele momento terem quebrado essa norma social foi uma coisa muito poderosa para mim. Foi como se aquelas pessoas tivessem dito: ‘A crise [climática] é tão urgente que até estamos a quebrar as nossas próprias regras.’”

Os cientistas que se manifestaram à margem da COP26 foram, portanto, uma espécie de inspiração para a norte-americana. Mas houve outros “pontos de viragem” que a empurraram para o activismo. Abramoff teve a tarefa de rever partes do sexto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), o que no seu íntimo também acentuou a necessidade de fazer algo mais no combate às alterações climáticas.

“Foi tão mau [rever o relatório]”, diz, afirmando que as suas muitas páginas tornam absolutamente claro que “temos mesmo muito pouco tempo para reduzir as nossas emissões” de gases com efeito de estufa. “Nós, os cientistas, já esperámos demasiado tempo”, pensou Rose após ter revisto o relatório. “Simplesmente fazer investigação não chega. É valioso, mas não chega.”

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Rose Abramoff acorrentada aos portões da Casa Branca DR

Abramoff juntou-se ao grupo SR no início de 2022, tendo realizado o seu primeiro protesto disruptivo em Abril. O local não poderia ter sido mais mediático: a Casa Branca. Rose e outros manifestantes acorrentaram-se aos portões da residência oficial do Presidente dos Estados Unidos, exigindo que Joe Biden declarasse estado de emergência climática — “coisa que ainda não fez”.

Detida com activistas

Abramoff foi detida na sequência deste protesto. E voltaria a ser detida dois dias depois, quando, com os mesmos manifestantes, bloqueou uma auto-estrada que dá acesso a Washington D.C., capital dos EUA e estado onde fica a Casa Branca.

Não há duas sem três, e Rose voltou a ser detida em Novembro, quando, juntamente com Peter Kalmus e outros activistas, realizou uma acção de desobediência civil num aeroporto em Charlotte, insurgindo-se​ contra as viagens de jacto privado.

Abramoff fizera parte de outros protestos climáticos pré-2022, mas estes haviam sempre sido “grandes marchas com muitas pessoas”. “Sempre me senti muito segura nessas manifestações”, diz, afirmando que só a partir do dia em que se acorrentou à Casa Branca é que começou a protagonizar acções mais arriscadas.

Rose diz sem hesitações que, na sua óptica, a desobediência civil é uma ferramenta importante, pois não só garante atenção mediática, como já levou a vitórias importantes. “O SR teve activistas a irem à COP27 [Cimeira do Clima de 2022, que aconteceu em Novembro, no Egipto] e o vice-presidente executivo da Comissão Europeia [Frans Timmermans] disse a um deles que a sua presença no evento fora crucial para a criação do fundo de perdas e danos”, revela Abramoff, que no seu artigo de opinião escreve: “Quando os cientistas agem, as pessoas ouvem.”

Compreensão dos (ex-)colegas

Questionada pelo PÚBLICO sobre se tinha uma boa relação com os colegas do ORNL, Rose responde prontamente que sim. “Eram bastante solidários. Admitiam que provavelmente não fariam o que faço, mas reconheciam o mérito das acções — e o meu direito de protestar no meu tempo livre”, diz, acrescentando que “as únicas pessoas que não demonstravam apoio eram as da administração”. Desde o início, a administração pediu à cientista para ela deixar claro, junto de quem pudesse assistir aos diferentes protestos e junto também da imprensa, que estava a agir a título pessoal.

Questionada sobre se se arrepende de ter protestado no “Encontro de Outono” da AGU, considerando que perdeu o emprego, Abramoff diz que teria voltado a fazer mais ou menos aquilo que fez. “Houve coisas logísticas sobre a acção que poderiam ter sido melhores. Mas apelar de alguma forma a que mais colegas de profissão agissem, especialmente num grande encontro de cientistas... Acho que, independentemente das consequências, teria feito isso.”

Rose é da opinião de que “é muito importante” que os cientistas climáticos decidam, rapidamente e colectivamente, começar a ter uma intervenção mais barulhenta. “Resta-nos muito pouco tempo”, avisa.

Relativamente à sua história, a​ “preocupação principal” da cientista neste momento ​nem é o facto de ter sido demitida. É​ o facto de a AGU ter alterado a posteriori o programa do seu “Encontro de Outono” para remover o seu contributo. “Não acho que as nossas acções nos devam impedir de continuar com a nossa investigação e de a apresentar”, comenta, frisando que não defende que os cientistas devam renunciar ao trabalho de laboratório. “A investigação é muito importante. Assim como o activismo.”

Sobre a possibilidade de as intervenções de Abramoff e Kalmus virem a ser reintroduzidas no programa do encontro de cientistas (diferentes plenários e apresentações podem ser vistos no site da AGU), Rose diz que decorre neste momento uma investigação de má conduta profissional e que prefere não comentar este tema enquanto não forem tomadas as devidas ilações.

A AGU também não desvenda o véu. “O Comité de Ética da AGU tem mantido contacto regular com os envolvidos neste caso. Estamos a seguir um processo da AGU bem estabelecido e disponível publicamente para acompanhamento e resolução de alegações de má conduta ou violações do código de conduta. Não podemos comentar mais sobre investigações activas”, disse recentemente, numa declaração oficial, Randy Fiser, director executivo da organização sem fins lucrativos.

“Ano após ano, o ‘Encontro de Outono’ da AGU oferece um espaço amplo para debate e discussão sobre todas as questões das ciências da Terra e do espaço. No entanto, também precisamos de garantir a segurança de todos os participantes e que a nossa programação” não é vítima de “interferências”, acrescentou.

A UT-Battelle, empresa que gere o ORNL, é mais lacónica. “Não comentamos assuntos específicos [envolvendo elementos, ou, neste caso, ex-elementos] do staff, mas respeitamos o direito que todos os funcionários têm de seguir os seus interesses pessoais fora do trabalho. Essas acções devem, no entanto, ser consistentes com as políticas da empresa, manter a confiança do público na nossa ciência e evitar o uso indevido de recursos dos contribuintes”, respondeu fonte do gabinete de comunicação ao PÚBLICO.

Castigada por não “manter o decoro”

Rose está agora à procura de emprego. “Muitos colegas ofereceram-se” para a “ajudar de várias formas”, com alguns a lhe terem feito chegar​ oportunidades de trabalho temporário, diz.

“Não sei muito bem o que estarei a fazer no futuro. Vou tentar fazer investigação e activismo tanto tempo quanto possível. Adoro as duas coisas”, afirma, reforçando acreditar que sai mais forte desta história.

“As pessoas estão a saber do sucedido e a reagir com indignação”, diz. “Estão descontentes com a forma como instituições científicas prestigiadas parecem estar contra dois cientistas que meramente interromperam uma apresentação para apelar a mais activismo climático. Estão descontentes com o facto de, numa altura destas, se estar a dar tanta importância a manter o decoro. Se é assim que a opinião pública reage à história de apenas dois cientistas, então não sei como é que a indústria dos combustíveis fósseis conseguirá resistir ao activismo de centenas de nós. Isto deixa-me mais esperançosa, para dizer a verdade.”

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