Protestos pelo clima: o que se aprende nas aulas de desobediência civil?

Os estudantes em protesto pelo clima sabem que têm comportamentos “qualificáveis como crime de desobediência”, então as manifestações são precedidas de “aulas” sobre desobediência civil.

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Protesto pelo clima na escola artística António Arroio, em Lisboa, na quinta-feira Guillermo Vidal

Várias escolas foram ocupadas esta semana por movimentos de estudantes para denunciarem a inacção perante a crise climática. Antes dos protestos, os alunos tiveram formação sobre desobediência civil – a recusa de obedecer a certas normas como forma de protesto, geralmente não-violento, que pretende criar pressão no governo ou em outros órgãos de autoridade. No caso da escola artística António Arroio, em Lisboa, os alunos dormiram na escola e bloquearam a entrada. Mas, antes, aprenderam a organizar a ocupação e a lidar com as possíveis consequências.

Falámos das coisas legais e ilegais, de qual a diferença entre uma manifestação pacífica e uma manifestação mais violenta e de quais os nossos direitos enquanto pessoas que nos manifestamos”, explicou ao PÚBLICO a estudante Marta Alves durante o protesto de quinta-feira na escola António Arroio, em Lisboa. “É muito importante as pessoas estarem informadas e saberem os seus direitos. Temos o direito de nos manifestar e de lutar pelo nosso futuro”, disse, em frente às portas em que alguns estudantes se encontravam colados para impedir a passagem para o interior. Assim, mesmo que a polícia fosse chamada, demoraria mais tempo a conseguir entrar e o protesto prolongar-se-ia.

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Alunos da escola António Arroio bloquearam a entrada e dormiram na escola desde segunda-feira Guillermo Vidal

As aulas de desobediência civil eram anunciadas na escola para quem se quisesse juntar. Alguns alunos faltavam por receio das faltas injustificadas, explicou Marta Alves. Por agora, os alunos continuam no recinto numa manifestação “mais tranquila”, assim como acontece no Liceu Camões. Já na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quatro activistas foram detidos na noite de sexta-feira. Muitos destes alunos seguirão este sábado para a marcha “contra o fracasso climático" que começa às 14h, no Campo Pequeno, em Lisboa.

“Aceitamos as consequências legais das nossas acções, porque sabemos que o custo da inacção climática será incomparável e que temos de fazer tudo ao nosso alcance”, lê-se num dos documentos disponibilizados pela Greve Climática Estudantil. Mas, a haver represálias, o movimento quer garantir que esses alunos “saibam os seus direitos” e que tenham protecção legal.

Dividir grupos

Nas formações e nos documentos, é referido que os alunos se devem organizar e dividir: existem os grupos de cuidados, os grupos de comunicação, os grupos de “linha da frente”, que começam o bloqueio, os grupos responsáveis por manter a calma (peacekeepers). E são dados conselhos sobre como manter as actividades interessantes e de como falar com outras pessoas sobre o tema da crise climática na origem do protesto.

Como é explicado no site do movimento Fim ao Fóssil: Ocupa!, as formações em desobediência civil aconteceram a 20 e 23 de Outubro e foram criadas em conjunto com o colectivo Fermento. Este colectivo organiza formações para movimentos sociais, como se lê no seu site. “A nossa visão de activismo é guiada pela urgência de mudança sistémica que a crise climática dita”, dizem. Um dos objectivos era explicar como se bloqueia um estabelecimento de ensino ou como se resiste de forma não-violenta às autoridades.

A preparação começa bem antes da ocupação, explicam: é preciso saber comunicar a acção e preparar os materiais necessários para decorar e para garantir comida e higiene a quem participa na ocupação, assim como preparar actividades para preencher o tempo. “O nosso objectivo é que as ocupas durem muito tempo e vão crescendo”, lê-se no documento de preparação também disponibilizado no site da Greve Climática Estudantil.

Imprevisibilidade e crime de desobediência

Outro dos recursos disponibilizados é um “manual de apoio legal”. É composto por alguns conselhos gerais, como ter o direito a manter o silêncio ao longo do protesto, não ter quaisquer objectos que possam ser considerados armas ou substâncias proibidas, “evitar obstruir entradas de edifícios” para não restringir a liberdade de pessoas não envolvidas na acção; ter consigo documentos de identificação. E ficam claros os “direitos que não podem ser negados”, como o direito ao silêncio, o direito a acompanhamento jurídico em caso de detenção ou o direito de acesso a água potável, alimentação adequada e instalações sanitárias.

“Uma acção directa envolve sempre comportamentos qualificáveis como crime de desobediência”, avisam. E refere-se que a detenção é uma “situação excepcional” e que só pode acontecer se tiver sido constituído arguido. “A constituição como arguido é uma garantia dos teus direitos, funcionando a teu favor”, lê-se no documento. Além disso, quando está em causa segurança privada, esses profissionais “não podem exigir identificação nem efectuar detenções”, ainda que seja provável que chamem a polícia. São ainda referidas as consequências penais que podem resultar de acções de desobediência civil, dependendo da idade.

O documento esclarece que “as escolas e universidades gozam de poder disciplinar, o que significa que podem aplicar sanções aos seus alunos quando estes incumpram os deveres que lhes são atribuídos por lei ou pelos regulamentos internos”. Num documento sobre a preparação de uma ocupação enquanto protesto, são também identificados vários passos. O primeiro é o “conceito de acção”. Definir o alvo da acção, escolher quais os pontos de intervenção, identificar aliados, perceber qual a audiência.

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Protesto pelo clima na escola artística António Arroio, em Lisboa, na quinta-feira Guillermo Vidal

Apesar dos conselhos, existe “sempre uma margem de imprevisibilidade que não é possível eliminar”. Caso haja processo judicial, tenta-se enquadrar “as acções desenvolvidas na actual crise climática e ecológica e expor o direito de redireccionar o foco da comunidade e de pressionar os responsáveis a agir”, lê-se ainda.

Os protestos têm acontecido desde segunda-feira por várias escolas e faculdades. Além da escola artística António Arroio, também houve estudantes que ocuparam o Liceu Camões, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, assim como as faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa e ainda o Instituto Superior Técnico (IST).

Os alunos do movimento Fim ao Fóssil defendem o fim da exploração de combustíveis fósseis até 2030 e a demissão do ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva. Mas, mais do que tudo, os estudantes têm dito nos protestos que o que querem mesmo é ser ouvidos.