Ciência, política, verdade, as cheias e o Brasil

Temos que introduzir a ciência na política, com mais afinco e mais solidez, como uma linha vermelha onde ninguém se atreve a tocar, assim como os direitos humanos, ou a defesa da democracia.

Eu sou ateu. E começando assim, sei que não estou a fazer muitos amigos. Mas acredito que o ateísmo é a verdade mais maltratada de sempre, e isto não é um detalhe. Quando durante a pandemia eu tentava ser útil na comunicação médica, e me confrontavam com o negacionismo da ciência, eu não apontava para os terraplanistas que era o que muitos faziam, mas sim para a crença de deus de quase todo o mundo: as pessoas acreditam no que lhes apetece.

Algumas acreditam que Jesus é filho de uma virgem, outros acreditam que Maomé ouviu vozes de Alá sozinho numa gruta (é assim que começa o islamismo) como vozes de deus, outros acreditam em deuses que são uma espécie de elefante com vários braços, outros na reencarnação. Ou seja, as pessoas acreditam no que lhes ensinaram ou no que lhes convém, por mais inverosímil que seja. E para um ateu como eu, com um pensamento científico, vejo tudo com distância e respeito, mas como algo que infelizmente tenho de aceitar, por mais que custe ver tantas mortes, como por exemplo, as causadas pelo negacionismo da ciência, na pandemia.

Carl Sagan, um dos maiores comunicadores pela ciência, marcou a minha adolescência com o livro Cosmos, que me demorou imenso tempo a ler, mas carrego até hoje grande compreensão da ciência graças a ele. Há uma reflexão que ficou para sempre na minha cabeça sobre a ligeireza de acreditar em algo acientífico : “O problema de acreditarmos numa mentira, é estarmos um passo mais longe da verdade.”

O que aconteceu no Brasil com o ataque aos três poderes, numa tentativa falhada de golpe de estado, foi fundamentado, numa crença muita forte, numa mentira, ou se quiserem, numa “verdade divina”, daquelas que ninguém viu, mas na qual milhões acreditam: “Bolsonaro ganhou as eleições”.

Não é por acaso que os bolsonaristas e os trumpistas são também, na sua grande maioria, negacionistas das vacinas covid-19, e negacionistas das alterações climáticas, pois para eles, a ciência é uma questão de opinião, e a “sua verdade” vale mais do que qualquer consenso científico de especialistas, que dedicaram a sua vida a estudar e a fazer ciência.

Nós tivemos pastores da igreja evangélica do Brasil a dizer que tinham máscaras divinas invisíveis que protegiam contra o SARS-CoV2. Isto pode parecer engraçado, mas para quem morreu por estas mentiras é bastante triste, e tudo se resume aos perigos de brincar com a verdade, ou seja, com a ciência.

Com as cheias e destruição associadas, primeiro em Lisboa, e depois no Porto, voltamos a ter confrontos com a ciência, e o que mais me assusta é uma grande “partidarite” no ataque à ciência, como já tínhamos visto com a pandemia nos EUA, no Brasil, e em menor escala, felizmente, em Portugal.

Toda gente sabe que partidos têm elementos negacionistas nas suas fileiras e até cronistas dos jornais, acho que não preciso de dizer nomes, porque não quero ir ao ataque, mas sim defender a ciência, que no fundo é defender o ser humano, e o ser, humano.

Claro que se pode e deve, discutir os problemas estruturais no Porto e em Lisboa. O planeamento das cidades falhou para aquelas chuvas. Mas o meu ponto é que não se pode criticar os políticos que dizem que “estas calamidades também são consequência das alterações climáticas”, porque esta premissa está correcta. Foram batidos recordes máximos históricos de pluviosidade por metro quadrado, num determinado tempo, e não sou eu que o digo, são todos os climatologistas que eu leio e ouço.

O famoso ciclo da água tende a acelerar com a subida média das temperaturas atmosférica e dos oceanos (menos falado, mas ainda mais importante). Portanto, além de estarmos a ter um dos Invernos mais quentes de sempre na Europa, sabemos também que fenómenos extremos climáticos, como ondas de calor, secas, tufões, furacões e chuvadas extremas, são mais prováveis, mais frequentes e mais graves, devido às alterações climáticas. Isto é ciência. Está provado.

Tudo isto para dizer o quê? Nós temos que introduzir a ciência na política, com mais afinco e mais solidez, como uma linha vermelha onde ninguém se atreve a tocar, assim como os direitos humanos, ou a defesa da democracia. A ciência é a única coisa que devia ser “sagrada”, porque é a maior aproximação à verdade, e quando tratamos mal a verdade, estamos a autodestruir-nos.

A ciência e a verdade são a melhor defesa do ser humano. E a ciência discute-se dentro dela própria, nos diferentes domínios do saber. Se é crime atacar a justiça, atacar a democracia, atacar a segurança do país, devia ser crime atacar a ciência, porque quem o faz, está a atacar-nos a todos nós. E o meu “nós” são oito mil milhões, é a humanidade.

Se a política é a luta pela felicidade em comum, mais ciência na política, por favor!

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras

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