Quatro décimos de grau

Devemos ficar surpreendidos com a denúncia desesperada de uma geração jovem a quem o presente é negado e o futuro aniquilado de forma definitiva e irreversível?

No presente, a temperatura do planeta Terra encontra-se a quatro décimos do limite oficialmente reconhecido como possível ponto de não retorno nas alterações climáticas.

As consequências e os efeitos nos últimos anos deste patamar de 1,1 graus onde nos encontramos são tão evidentes no nosso quotidiano que as irresponsáveis atitudes negacionistas transitaram para a dimensão das patologias do foro psiquiátrico definidas pelo delírio.

E, no entanto, apesar de todos os consensos alcançados nas cimeiras de Paris e Glasgow, os países produtores de petróleo conseguiram neutralizar, apoiados por um exército de mais de 600 lobistas dos combustíveis fósseis na COP-27, qualquer tipo de progresso, relativizando a fasquia para o patamar dos dois graus.

Com a próxima cimeira a tomar lugar nos Emirados Árabes Unidos, as perspectivas são tão negras como a cor do petróleo e tudo indica que a velocidade na “auto-estrada do Inferno” só irá aumentar.

As cheias de Lisboa, ponto extremo climático, inserem-se nos padrões previstos pelos cientistas no nosso futuro e, no seu contraste oscilante entre períodos de seca acentuada e pluviosidades diluvianas repentinas, representam novos padrões de imprevisibilidade.

Claro que os planos de drenagem são imperativos e urgentes, mas a dimensão da ameaça transcende a ideia de um episódio esporádico possível de ser gerido de forma “normal”.

Devemos, então, ficar surpreendidos com a denúncia desesperada de uma geração jovem a quem o presente é negado e o futuro aniquilado de forma definitiva e irreversível?

Dediquei anteriormente uma série de artigos a estas urgentíssimas questões.

Num deles, intitulado “Greta”, baseando-me num artigo da Spiegel, escrevi: “Greta é comparada ao famoso Neo do Matrix, o qual é exposto à escolha entre tomar a pílula azul, que o irá levar ao esquecimento ‘normalizado’ de uma verdade escondida, e a pílula vermelha, que o irá levar ao conhecimento sem filtros da mesma verdade. Greta optou pela pílula vermelha.”

Esta consciência nua e autêntica do desafio definitivo e extremo de escolha de sobrevivência e de uma urgência que não permite relativizações é o “cris de coeur” que motiva toda uma geração jovem.

Não se trata, portanto, de uma posição ideológica, ou que possa ser colocada num binómio de esquerda ou de direita.

E, agora, vou surpreender-vos, com o exemplo de uma personagem que, no seu longo percurso de coerência ilustrada nas suas iniciativas concretas ao longo dos anos, encontra-se no presente também amordaçada e inibida por outros sentidos de dever determinados pela sua posição actual.

Embora ele esteja no pináculo simbólico do sistema, na sua posição de rei, ele é simultaneamente, e paradoxalmente, nas questões ambientais, um símbolo vivo de anti-sistema.

Refiro-me a Carlos III, rei do Reino Unido. Ele ilustra o posicionamento que transcende as definições políticas e, tal como Greta, optou de forma inegável pela pílula vermelha.

Quando se atinge este ponto de lucidez e de autêntica consciência ecológica, atinge-se um ponto de não retorno, onde é impossível continuarmos a alienarmo-nos da verdade e a enganar os outros.

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