O que fazer com tanto greenwashing? A ONU acaba de dar um primeiro passo

Apesar de as empresas se afirmarem cada vez sustentáveis, estamos longe de ver este valor impregnado na sua constituição. As Nações Unidas lançaram há dias relatório que combate o greenwashing.

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Acção de activistas da Extinction Rebellion na Cidade do Cabo, África do Sul Esa Alexander/Reuters

O comportamento da Coca-cola na 27ª Cimeira do Clima das Nações Unidas (Conferência das Partes - COP27) pode ser visto como uma acção clássica de greenwashing. A empresa norte-americana é uma das marcas a apoiar a COP27, que decorre em Sharm el-Sheikh, no Egipto. Por trás deste gesto de responsabilidade ambiental por parte da famosa marca, está um facto repetidamente denunciado pelas organizações ambientalistas: a Coca-cola é a empresa que mais produz no mundo embalagens de plástico, uma das grandes fontes de poluição dos nossos tempos.

A palavra “greenwashing” tem andado nas bocas do mundo. O Mundial de Futebol, que se vai realizar no Qatar a partir do próximo domingo, foi acusado de greenwashing: anunciado como o primeiro a assegurar a neutralidade carbónica, mas onde os estádios vão ter ar condicionado e haverá diariamente 150 voos para transportar os adeptos, de acordo com o canal noticioso estatal France 24. Até as próprias COP são alvo desta crítica. Nas palavras da jovem ambientalista sueca Greta Thunberg, as cimeiras são lugares onde pessoas no poder “usam diferentes tipos de greenwashing”, referiu, citada no jornal britânico The Guardian.

Com mais frequência, a palavra está associada às empresas que anunciam objectivos de sustentabilidade e planos para atingirem a neutralidade carbónica, mas que não estão espelhados nos seus negócios. Greenwashing é “quando publicamente uma empresa diz que está empenhada e apresenta um conjunto de indicadores na questão da área da sustentabilidade, mas conseguimos encontrar uma série de contradições nas suas acções”, diz Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero, enunciando um conceito que já tem algumas décadas.

Foi em 1986 que Jay Westerveld, um ambientalista norte-americano, escreveu pela primeira vez a palavra “greenwashing" num ensaio, depois de encontrar um aviso num hotel sobre a importância de voltar a usar as toalhas de banho e não as deixar no chão para serem lavadas após uma única utilização. Apesar do aviso ter uma ênfase ambiental, Westerveld não encontrou a mesma preocupação no resto do funcionamento do hotel. Por isso, concluiu que a questão das toalhas era apenas uma medida económica: quanto menos toalhas fossem lavadas diariamente, mais o hotel poupava em luz e energia.

Sustentabilidade impregnada

Saltando para 2022 e observando o caso da Coca-cola e da COP27, Francisco Ferreira não tem qualquer dúvida. “A Coca-cola tem um peso enorme na produção de plásticos. Há fábricas da Coca-cola a sobreexplorar aquíferos”, recorda. Os plásticos acabam em aterros, em praias por todo o mundo, na grande ilha de lixo no meio do oceano Pacífico, no estômago dos animais ou, quando desfeito em pedacinhos microscópicos, até mesmo no sangue de humanos. “É óbvio que [a acção da Coca-cola] tem que ser vista como greenwashing. Não posso aceitar como íntegras as acções de uma empresa quando não respondem ao real esforço que necessitamos [pelo ambiente]”, sublinha o ambientalista.

Em 2021, a Coca-cola produziu 3,2 milhões de toneladas de plástico para embalagens. De todo este volume, 2,7 milhões de toneladas são virgens. Ou seja, não foram fabricadas a partir de material reciclado. Este valor é um aumento de 3% face à produção da empresa em 2019, de acordo com o relatório O Compromisso Global 2022 feito pela Fundação Ellen MacArthur para acabar com a poluição de plástico, apoiado pelo Programa Ambiental das Nações Unidas.

Além da Coca-cola, empresas como a Nestlé, a L’Oréal e a Mars Incorporated são signatárias daquele compromisso e providenciaram os dados sobre a produção e o uso de plástico que fazem. É um passo importante em direcção à transparência do seu impacto ambiental no mundo, mas não chega para objectivos como os da sustentabilidade e da neutralidade carbónica.

“A sustentabilidade tem de estar impregnada em tudo”, diz por sua vez João Wengorovius Meneses, secretário-geral da BCSD Portugal – Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. “É uma transformação total do pensamento da cultura da empresa e isso é difícil.”

O BCSD tem como objectivo ajudar as empresas a fazerem a transição em três áreas que se tornaram valorizadas para o mundo do capital: a sustentabilidade ambiental, o desempenho social e a ética a nível da gestão, também referida como governança. “São três áreas basilares sem as quais não há sustentabilidade dos modelos de negócios”, refere João Wengorovius Meneses. “É um esforço que as empresas fazem de acordo com a regulamentação, mas também para serem mais competitivas e resilientes.”

A necessidade de escrutínio

Apesar das afirmações de sustentabilidade serem cada vez mais frequentes por parte das empresas, a mudança de que João Wengorovius Meneses fala ainda está longe de acontecer. Um relatório divulgado no início de 2022 mostrava que apenas três das 25 maiores empresas globais estavam “claramente comprometidas a uma profunda descarbonização de 90% das emissões de toda a sua cadeia de valores”, lê-se no relatório Corporate Climate Responsability Monitor, escrito pelo Instituto NewClimate para a Política Climática e para a Sustentabilidade Global.

As três empresas que o relatório refere são a Maersk, a Vodafone e a Deutsche Telekom. Do lado oposto, a Novartis, a Nestlé, a BMW Group e o Carrefour estão entre as piores empresas classificadas naquele âmbito, revela o documento. Em conjunto, as 25 empresas analisadas (onde também se incluem a Amazon, a Apple, a Glaxosmithkline, o Ikea, a Sony, a Walmart, entres outras) obtiveram 3,18 biliões (milhões de milhões) de euros de lucro em 2020, um décimo do lucro obtido pelas 500 maiores empresas do mundo. No ano anterior, estas 25 empresas foram responsáveis pelas emissões equivalentes de 2,7 mil milhões de toneladas de dióxido de carbono, 5% das emissões de gases com efeito de estufa.

Apesar das 25 empresas anunciarem planos para alcançar a neutralidade carbónica, essa neutralidade só tem em conta, em média, 40% da cadeia de valor das empresas. Em cinco casos, a neutralidade carbónica refere-se apenas a 15% das emissões da cadeia de valores, deixando de fora as emissões emitidas durante a produção das matérias-primas e, também, as emissões produzidas durante a distribuição.

“As empresas têm de ser alvo de um escrutínio intenso para confirmar se os seus compromissos e afirmações são credíveis, e deveriam ser responsabilizadas no caso de não o serem”, avisa o relatório.

Tanto João Wengorovius Meneses como Francisco Ferreira defendem que haja normas internacionais como guias para ajudar as empresas a atingir a neutralidade carbónica e também uma fiscalização. “Tem que haver validação de terceiros. Certificações”, defende Meneses. Por sua vez, Francisco Ferreira explica que as afirmações de sustentabilidade das empresas “requerem uma avaliação rigorosa”. O ambientalista dá um exemplo das empresas de aviação que dizem compensar as emissões de carbono. “Compensa-se em um ano ou em 30 anos? Plantam-se árvores. Mas e se houver um incêndio?”, problematiza.

Rigor e brechas

Em plena COP27, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu um passo em frente na direcção a essas normas. “Temos de ter tolerância zero em relação ao greenwashing associado à neutralidade carbónica”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, na semana passada, quando foi publicado um novo relatório pela ONU contra o greenwashing. Com o título Integridade é Importante: Compromissos de Neutralidade das Empresas, Instituições Financeiras, Cidades e Regiões, o documento apresenta um roteiro de dez recomendações para que as empresas, instituições, cidades e regiões possam atingir, passo a passo, a neutralidade carbónica num processo “ambicioso, com integridade e transparência, e sendo credível e justo”, lê-se na sua introdução.

“Um número crescente de governos e de actores não estatais está a comprometer-se a serem livres de carbono – obviamente isso são boas notícias”, disse Guterres. “O problema é que o critério e os marcos de referência para estes compromissos têm um nível variável de rigor e de brechas suficientemente grandes para um camião a diesel passar por elas.”

Em 2021, durante a COP26 em Glasgow, o secretário-geral da ONU comprometeu-se a criar um Grupo de Especialistas de Alto Nível para delinear este roteiro, que acabou por contar com 17 pessoas e foi liderado por Catherine McKenna, antiga ministra do Ambiente e das Alterações Climáticas do Canadá.

“O risco é claro. Se os pressupostos de greenwashing sobre os compromissos da neutralidade não forem abordados, isso vai minar os esforços de líderes genuínos, criando tanto a confusão, como o cinismo e o falhanço para se realizar acções climáticas urgentes”, adianta o documento. O objectivo final é impedir que a temperatura média global suba acima dos 1,5 graus Celsius em relação ao período pré-industrial.

Entre os vários tópicos, o relatório recomenda aos organismos não estatais a criação de um plano para se atingir a neutralidade carbónica com objectivos a cada cinco anos, que seja ambicioso, iniciado rapidamente e aplicado a toda a cadeia de valores de empresas, de fundos de investimento, de cidades ou de regiões, com o objectivo de, pelo menos, cortar as emissões em 50% até 2030. Recomenda-se também que as empresas publiquem anualmente o seu progresso e que esses relatórios sejam verificados por uma entidade independente.

Por outro lado, o documento apresenta várias linhas vermelhas que as instituições não estatais não podem ultrapassar, como o investimento em combustíveis fósseis, os negócios que provocam a desflorestação, o uso de créditos de carbono baratos, que muitas vezes têm origens duvidosas, e o lobbying pela indústria fóssil. “O nosso roteiro dá normas claras e critérios que devem ser seguidos quando se desenvolvem compromissos de neutralidade zero. Neste momento, o planeta não pode dar-se ao luxo de atrasos, desculpas, ou mais greenwashing”, reforça Catherine McKenna.

A raiz do negócio

No entanto, para João Wengorovius Meneses a transformação necessária para se atingir aqueles objectivos a nível mundial exige uma aposta económica com a mesma ambição que o Presidente norte-americano John F. Kennedy teve no início da década de 1960, com a viagem à Lua. “Estamos muito longe de cumprir as metas. Não são só as empresas, são os cidadãos, os governos. E as empresas são uma realidade muito diversa”, aponta. “Precisamos de que as empresas sejam capazes de aceder a novas soluções a um ritmo que agora não têm tido. Precisamos de um momento de ida à Lua, de inspiração e aspiração”, defende.

Para Francisco Ferreira, a transformação de um negócio para se tornar neutro a nível de emissões é uma questão existencial. “Acho que é extremamente difícil e muito caro ser-se neutro em carbono”, refere o ambientalista. “Uma empresa verdadeiramente sustentável tem de ir ao fundo da sua própria existência e dos seus próprios produtos”, argumenta. E é aí que está a dificuldade: “Uma refinaria tem de pensar que, se calhar, não pode trabalhar mais com petróleo. É essa vertente que acaba por ser dramática porque está em causa a raiz do negócio.”

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