Será Carlos III um rei ecológico, um guerreiro do clima?

Que tipo de monarca será o rei Carlos III? Uma coisa é certa: diferente da mãe. Conhecido pela forma apaixonada como defende medidas contra a crise climática e a favor da agricultura biológica, talvez o monarca não consiga manter a neutralidade enquanto vê o planeta a arder.

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Carlos fala na sessão de abertura da COP 2009, em Copenhaga Bob Strong/Reuters

Que tipo de rei será Carlos III? O monarca ofereceu um primeiro vislumbre na última sexta-feira, enquanto se movia entre a multidão que prestava uma última homenagem à sua mãe, a Rainha Isabel II, na parte externa do Palácio de Buckingham.

Uma mulher debruçou-se sobre a corda de segurança e perguntou a Carlos se lhe podia dar um beijo. Imaginem, um beijo – quando o protocolo foi sempre o de jamais tocar na rainha. Mas Charles parecia tranquilo. A senhora segurou-lhe o ombro e tocou os lábios na bochecha do monarca.

Charles será um monarca diferente da mãe. Isso é quase certo.

No primeiro discurso feito durante o luto, Carlos elogiou o compromisso da mãe com o serviço público. “A sua dedicação e devoção como Soberana nunca oscilaram, em tempos de mudança e progresso, em tempos de alegria e celebração, e em tempos de tristeza e perda”, disse. Ao longo de uma vida de serviço público, vimos aquele amor permanente pela tradição, junto com aquele abraço destemido do progresso, que nos torna grandes como nações.

Carlos tem convicções. Ele expressa-as. E já tem 73 anos. Talvez já não consiga desligar o botão deste tipo de comportamento. O herdeiro passou a vida inteira a defender os próprios pontos de vista. Criou think tanks, fundações e trusts para isso mesmo, para promover soluções holísticas para os desafios que o mundo enfrenta hoje.

Ele tem pensamentos articulados sobre fast fashion, sebes, garagens e tomate biológico. Carlos admitiu que, como rei, terá que expressar os próprios pontos de vista com menos abertura e frequência - mas os biógrafos do monarca não acreditam que isso seja totalmente possível.

Já chegou a ser considerado insano, porque uma vez confessou que fala com árvores, mas, para o ano de 2022, Carlos não poderia estar mais apropriado. Ele brilhou na cúpula do clima COP26 do ano passado, em Glasgow. É inflamado. E realmente acredita que o planeta está a arder enquanto os governos do mundo brincam.

Carlos bem poderia ser um rei-guerreiro ecológico vestido num fato da marca Savile Row. Ele será um tipo diferente de monarca. É um pensador profundo, romântico, sentimentalista, disse Robert Hardman, biógrafo real, autor do livro Queen of Our Times.

A neutralidade política é muitas vezes entendida como essencial para a monarquia e a sua sobrevivência nos tempos modernos. No entanto, na biografia de 2018 de Robert Jobson, intitulada King Charles: The Man, the Monarch, and the Future of Britain, o autor descreve o biografado como alguém que quer “liderar como monarca, e não apenas seguir”.

A rainha? Ela era difícil de definir, honestamente.

Todos nós podíamos ver que Isabel II adorava cavalos, sapatos ponderados, cães, malas e a Igreja da Inglaterra. E também apreciava caçar veados e conduzir Land Rovers. Amava a tradição, o príncipe Philip, o sentido de dever e, claro, a família real (a mesma que por vezes tropeçava e acabava por cair nas páginas dos tablóides).

Mas o que a rainha realmente pensava sobre qualquer uma das principais questões do seu tempo, ao longo de um reinado de 70 anos? Apartheid? Feminismo? Brexit? Isabel II acreditava fortemente que um monarca não deveria interferir na política. E assim, na maioria dos casos, os observadores reais tiveram que recorrer à leitura das folhas de chá para adivinhar a posição real.

E, no entanto, os britânicos adoravam-na. Mesmo que muitos desgostem da monarquia enquanto instituição, não deixam de ter um fraquinho pela rainha.

Os especialistas dizem que muitos britânicos não amam Carlos, embora também não o detestem. Enquanto alguns ainda guardam rancor, muitos parecem ter desistido de castigá-lo, mais de 25 anos depois, pelo seu desempenho desastroso no casamento com a princesa Diana, que terminou em tragédia. Carlos foi um homem adúltero. Mas também é certo que estava profundamente apaixonado por Camilla que, agora, é a rainha consorte.

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Carlos e Camilla visitam lote de agricultura biológica de Londres em 2008 Samir Hussein/WireImage

Episódios da popular série de televisão The Crown retratavam-no como um homem frio, cruel e desconfortável consigo mesmo. Mas quem priva com Carlos descreve-o como alguém caloroso. Numa longa fila de cumprimentos no palácio, a rainha agilizava as coisas. Carlos demorava.

“A equipa de Carlos sempre diz que as suas interacções demoram muito mais do que as da rainha, porque ela é muito boa em dizer algumas palavras, apertar a mão e então, pronto, pronto”, disse Hardman ao The Washington Post. “Ao passo que Carlos é muito mais propenso a começar a conversar e dizer: ‘Oh, o senhor é um criador de ovelhas. Que tipo de ovelha cria?’ É apenas uma abordagem diferente.”

Em público, Carlos pode ser estranho. Inapropriado. Como quando ele se gabou do facto de o carro desportivo Aston Martin que possui ser amigo do ambiente, isto porque usava vinho e queijo como combustível.

Carlos adoptou ao longo dos anos algumas posições peculiares, e estranhamente específicas, sobre temas como as melhores raças de ovelhas e a importância de dispormos de uma carpintaria apropriada. O monarca possui ainda grandes ideias sobre a crise climática, agricultura biológica, a decadência urbana e a natureza fria da arquitectura moderna.

No documentário da BBC Prince, Son And Heir: Charles at 70, de 2018, o futuro rei é questionado sobre acusações de intromissão em assuntos públicos. Ele responde: “Sério? Não diria.” E explica: “Questiono-me sempre sobre o que é intromissão, quer dizer, sempre achei que se tratava apenas de motivação.

É intromissão preocupar-me com as cidades do interior, como fiz há 40 anos, e com o que lá se passava (ou deixava de passar)? Com as condições em que as pessoas viviam?. E concluiu: Se isso é intromissão, estou muito orgulhoso disso.

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Carlos visita escola primária em Bristol, em 2005, que produz os vegetais biológicos servidos na cantina Anwar Hussein Collection/Getty Images

Fazendo referência a Shakespeare, e sobre como o jovem príncipe Hal cresceu para ser Henrique V, Carlos afirmou aos documentaristas: Não serei capaz de fazer as mesmas coisas que fiz, sabem, como herdeiro, então é claro que uma pessoa opera dentro os parâmetros constitucionais”.

Questionado sobre os receios de que continue a envolver-se do mesmo modo, Carlos afirmou: Não, não. Não sou tão estúpido, percebo que ser soberano é um exercício à parte.

A entrevista em si é outro ponto de contraste com a mãe. A Rainha Isabel II nunca deu uma entrevista à imprensa durante a vida, embora tenha vivido uma época em que o jornalismo britânico tratava a monarca a pão-de-ló. Já Carlos passou horas e horas com a BBC, apesar de ter enfrentado os mexericos dos piores tablóides dos anos 90.

A rainha acreditava, com devoção, em Jesus Cristo como senhor e salvador. Ela era uma figura religiosa, actuava como Defensora da Fé e Governadora Suprema da Igreja da Inglaterra. As mensagens de Natal incluíam com frequência uma menção a Jesus.

Carlos é mais espiritual do que devoto. Acredita que os humanos caíram em desgraça, que perderam o Éden por sucumbirem ao pensamento mecanicista, tecnológico e modernista.

No livro que publicou em 2010, Harmony, uma exposição filosófica com 336 páginas, Carlos denuncia como a Era da Conveniência deu origem à Era da Desconexão.

Para Carlos, Deus pode ser percepcionado na repetição do padrão matemático das pétalas de uma flor.

A rainha teve suas muitas instituições de caridade, e Carlos também. Mas ele foi muito mais longe ao usar a entidade que fundou para expressar uma visão de mundo.

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O príncipe William herdou do pai a paixão pela criação de animais e pela agricultura biológica Tim Graham Photo Library/Getty Images

Na qualidade de duque da Cornualha, e superintendente do Ducado da Cornualha, Carlos era responsável por mais de 52 mil hectares de terra em 20 condados no sudoeste da Inglaterra. Geria estas propriedades focado sempre na “sustentabilidade”, uma das suas palavras favoritas – e não segundo uma outra palavra-chave proposta pela rainha.

Para promover as ideias que tem sobre arquitectura tradicional, atendendo àquilo que Carlos chama de “escala humana”, o monarca criou completamente do zero uma comunidade experimental preparada para acolher seis mil moradores e 180 empresas. O projecto chama-se Poundbury e possui prédios baixos com jardins à frente e limitação à circulação automóvel. Assim é o “novo urbanismo” que o rei baptizou de a sua “visão para a Grã-Bretanha”.

O fundo Prince's Trust também, ao longo de quatro décadas, ajudou um milhão de jovens na Grã-Bretanha e na Commonwealth, com cursos gratuitos, bolsas e oportunidades.

Carlos dispõe de fundações e filantropos e isso causou alguns escândalos menores, com relatos de doações em dinheiro de um ex-primeiro-ministro do Qatar que foram entregues numa mala e numa sacola de compras da Fortnum & Mason. A Charity Commission recusou-se a investigar o caso. O então príncipe disse que todas as doações foram legalmente declaradas e contabilizadas.

O monarca garantiu que voltará a morar no Palácio de Buckingham, no centro de Londres, propriedade da qual a Rainha Isabel II se afastou desde a pandemia. O novo rei também diz que quer renovar a monarquia, trazendo-a para o século XXI.

Uma das últimas dores de cabeça da rainha foi o que fazer com o príncipe Andrew, que foi amplamente banido da vida pública, desde o processo movido por uma mulher que diz ter sido traficada por Jeffrey Epstein e Ghislaine Maxwell, agressores sexuais condenados.

Carlos parece ter concordado com a mãe na altura.

Como o rei Carlos vai gerir as coisas com o príncipe Harry continua sendo uma questão em aberto. Vai esforçar-se para trazer Harry e a mulher, Meghan, de volta ao rebanho real? Mesmo depois de eles terem abandonado os deveres reais, mudando-se para a Califórnia e fazendo queixinhas à Oprah? Ou vai mantê-los distantes?

No Palácio de Buckingham, na noite de quinta-feira, Jane Gibbs, 58 anos, disse que a avó era uma dama de companhia da princesa Margaret, irmã da rainha. Falava debaixo de um guarda-chuva e referia-se à rainha como “a nossa governante” e “melhor do que qualquer presidente”.

Sentada ao lado de Jane Gibbs estava Jill Creswell, uma londrina reformada, que carregava um buquê de flores. “Choramos até os olhos ficarem vermelhos”, disse. Jill Creswell afirmou que aprovava que Carlos se tornasse rei, já que ele era o próximo na linha de sucessão, mas deixou claro que era William quem seria “o rei dos britânicos”. Momentos depois, cantou o hino nacional, “God Save the Queen”.

Muitas pessoas fizeram isso, às vezes alto, às vezes baixinho, às vezes motivadas por uma música vinda de algures na multidão de milhares.


Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post