Emílio Andrade (1921-2022), o adeus ao senhor da Adega Tia Matilde – e sócio número 1 do Benfica

Morreu esta terça-feira aos 101 anos. Era a alma de um dos mais antigos e famosos restaurantes de Lisboa. A cozinha da Adega Tia Matilde tem fama mas o ingrediente principal era o anfitrião e proprietário: Emílio Andrade Júnior, que herdou o espaço dos pais. A sua paixão pelo Benfica também contava e muito.

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Emílio Andrade Júnior, na Adega Tia Matilde RUI GAUDÊNCIO

“Uma terra, uma cidade, não se faz sem as casas e as pessoas que nelas vivem. Os restaurantes dão um contributo decisivo na construção do rosto de uma cidade. Lisboa tem dentro de si essas casas e a Adega da Tia Matilde é um desses restaurantes”, escrevia o crítico gastronómico da Fugas, o mestre David Lopes Ramos, sobre o restaurante e o seu proprietário, Emílio Andrade Júnior, em... 2004. Quase duas décadas depois, o comentário mantém-se real. E, durante quase duas décadas depois deste texto, o senhor Emílio manteve-se como o anfitrião perfeito de uma casa de culto: “A minha vida é esta”, dizia há dias, na sua última entrevista ao Boa Cama Boa Mesa do jornal Expresso, que no ano passado lhe deu o Prémio Carreira. Morreu esta terça-feira, aos 101 anos, levando a muitas homenagens de gastrónomos, gente de todas as áreas, e, especialmente, de benfiquistas: era o sócio número 1 do SL Benfica, o seu clube do coração, e a sua adega era também casa de muita gente ligada ao clube, nomeadamente, ao longo de muitos anos, Eusébio.

A Adega da Tia Matilde abriu, como taberna, pelas mãos dos pais de Emílio, a 1 de Maio de 1926, cinco anos depois do nascimento (2 de Abril de 1921) daquele que seria o seu anfitrião durante décadas.

Foi no restaurante que começou a trabalhar em pequeno, aqui cresceu, aqui fez a sua vida. O restaurante tornou-se um dos “mais afamados e afreguesados restaurantes lisboetas que servem ‘cozinha tradicional portuguesa'”, escrevia Lopes Ramos na Fugas.

Emílio contava, então, que a casa “trabalhou durante muito tempo como casa de pasto, taberna de bairro. Servia refeições para o pessoal que trabalhava aqui no cais de caminho-de-ferro na descarga da batata, do carvão e de outros produtos. À noite, esses descarregadores, mas também calceteiros, cauteleiros e outros jogavam às cartas e à laranjinha.”

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Adega da Tia Matilde Rui Gaudêncio

Era por esses dias “a taberna do Emílio”, nome do pai, que o proprietário herdou. Depois da morte da mãe, Matilde, em 1946, Emílio e a mulher, Isabel, tomaram conta da casa, mudando o nome em homenagem à cozinheira de mão cheia que era a dona Matilde.

O restaurante foi deixando o ambiente de taberna e jogatina, estendeu-se para novo espaço ao lado, foi-se tornando casa reputada de comes e bebes. Dona Isabel cuidava da cozinha e viria a morrer em 1993. Emílio prosseguiu a obra, depois já com as filhas, Isabel e Matilde.

“Benfiquista de todos os costados”, como lhe chamava Lopes Ramos, chegou a ser convidado para ser director do Benfica, mas nunca aceitou, embora continuasse tanto uma companhia frequente da equipa de futebol como um anfitrião perfeito na adega.

E um filósofo: “Embora não tenha feito o mundo, fiz uma aldeia e sinto-me muito bem dentro dela”, dizia da sua casa à Fugas.

Em nota de pesar, o Benfica lamentou a morte do seu amigo e sócio número (desde os 12 anos).

“Hoje é um dia triste para o Sport Lisboa e Benfica com a partida do nosso sócio número 1, Emílio Andrade Júnior. Foi sempre um exemplo de enorme dedicação e devoção pelo Glorioso”, lê-se na mensagem do presidente, Rui Costa.

“Tive o privilégio de testemunhar toda essa paixão do nosso Ti Emílio, como carinhosamente os amigos e todos os que gostavam dele o tratavam. Sempre disponível para o clube, foi uma inspiração e um exemplo para os nossos atletas e para todos os benfiquistas, sem nunca esquecer a relação tão fraterna com o grande Eusébio”, escreve Rui Costa. O Benfica guardou um minuto de silêncio em memória e homenagem a Emílio Andrade Júnior antes do jogo contra o Paços de Ferreira nesta terça-feira.

As cerimónias fúnebres decorrem na quinta-feira: a partir das 9h30, o velório na Igreja de Nossa Senhora de Fátima (Av. de Berna, Lisboa); às 12h, a missa, seguida de cortejo para o Cemitério de Caneças, “onde ficará sepultado no jazigo da família”, refere o SL Benfica.

O restaurante (Rua da Beneficência, 77) encerrou por luto, mas o trabalho e a memória do senhor Emílio estão assegurados e continuarão, como se informa: “Estamos fechados. Falecimento de familiar. Reabrimos sexta-feira”.

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