O ambiente é mais uma arma na invasão russa da Ucrânia

Inutilizar terras agrícolas, cortar o acesso e envenenar a água, usar as centrais nucleares para causar medo – estas são estratégias postas em prática na guerra, com consequências ambientais pesadas. Poluição e destruição vão de mãos dadas no conflito.

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Soldados ucranianos disparam um canhão Howitzer na região de Zaporijia REUTERS/Stanislav Yurchenko

A destruição dos recursos naturais e do ambiente tem sido usada como uma arma pelos invasores russos na Ucrânia. “São colocadas minas em terras agrícolas, destruídas barragens que fornecem energia”, exemplifica Richard “Drew” Marcantonio, do Instituto Internacional de Estudos para a Paz Joan B. Kroc da Universidade de Indiana (EUA), que já há alguns anos estuda a degradação ambiental causada pela guerra no Leste da Ucrânia, entre os separatistas de Lugansk e Donetsk e o Estado central.

“Mas, ao mesmo tempo, o ambiente é vítima da guerra. Tem sido substancialmente degradado como dano colateral dos combates: poluição atmosférica por causa dos edifícios destruídos, depósitos de combustível a arder, poluição das águas devido à falta de gestão de locais contaminados”, acrescenta Marcantonio, numa entrevista por email.

“A estratégia militar do invasor usa uma política de terra queimada, para destruir o máximo de terra, envenenar a água, cortar e militarizar a água, usar as centrais nucleares como uma espécie de poluição psicológica. Tudo isto está misturado numa estratégia de destruição”, considera, por seu lado, Ben Cramer, investigador associado do Grupo de Investigação e Informação sobre a Paz e a Segurança (GRIP na sigla em francês), em Bruxelas.

“Um dos primeiros objectivos dos bombardeamentos foi cortar qualquer acesso das pessoas à água. Tal como a electricidade, é uma das coisas de que os habitantes das cidades mais precisam”, salienta Cramer, por telefone, a partir de Bruxelas. É o que temos visto nas cidades ucranianas sitiadas pelo exército russo, como Mariupol, sem água, sem energia, nem alimentos e outros bens essenciais. “Isto está a ser usado para destruir o moral da população, assustar as pessoas e levá-las a fugir”, diz ainda o investigador.

“A longo prazo, a destruição vai provocar uma crise económica. O impacto da poluição que está a ser produzida agora levará anos e anos a ser compreendido, e depois a ser reabilitado”, diz Ben Cramer. A revista The Economist cita um estudo feito por cientistas ligados ao Centro de Investigação para Políticas Económicas (CEPR, na sigla em inglês), uma rede de investigadores europeus, sem fins lucrativos, que estima que reabilitar o país (e não apenas do ponto de vista ambiental) após a guerra custará entre 200 mil milhões e 500 mil milhões de euros. O limite superior é três vezes mais do que o produto interno bruto (PIB) da Ucrânia antes da invasão russa.

No entanto, Richard “Drew” Marcantonio mostra-se céptico em relação à contabilização dos custos da recuperação do ambiente da Ucrânia. “Não acredito muito que o ambiente entre na lista das reparações que será coligida depois da guerra, mas a esperança é a última a morrer.”

Provocar poluição

A Ucrânia é um país muito desenvolvido, com muitas indústrias – e centrais nucleares, tem quatro activas e uma desactivada, Tchernobil, local do maior acidente nuclear da história. Os bombardeamentos estão a atingir essas estruturas também. “Bombardear indústrias químicas, fábricas, é uma forma de provocar poluição”, salienta Ben Cramer.

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Destruição na cidade de Mariupol REUTERS/Alexander Ermochenko

Por exemplo, no início de Abril a Rússia bombardeou um tanque de ácido nítrico na região de Lugansk – e a inalação de vapores deste ácido produz irritação das vias respiratórias superiores, espirros, tosse, dor no peito, dificuldade em respirar, salivação e tonturas, e pode evoluir para edema pulmonar e morte.

“Por outro lado, é preciso considerar que a Ucrânia é um grande produtor agrícola, com muitos terrenos dedicados ao cultivo do trigo e outras culturas usadas para alimentar muitas pessoas em todo o mundo. Isto é outro tipo de guerra, pois vai provocar fome noutros locais”, salienta Ben Cramer. Não só não estão a ser exportados produtos agrícolas ucranianos, porque os seus portos estão bloqueados pelas tropas russas, como os embargos decretados à Rússia impedem a exportação de cereais cultivados neste país, que é outro grande produtor.

O resultado é que a disponibilidade de trigo está a ser severamente reduzida em seis países africanos que importam pelo menos 30% do seu trigo da Rússia e da Ucrânia, alertou a FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. E o índice da FAO atingiu novo recorde de 32 anos, no primeiro mês de verdadeiro impacto da guerra da Ucrânia nos mercados internacionais de matérias-primas agrícolas: atingiu em Março a média de 159,3 pontos, mais 12,6 % do que em Fevereiro, “quando já tinha atingido o seu nível mais alto desde a sua criação”, em 1990.

Uma fome deliberada?

Se isto mostra como as repercussões da guerra na Ucrânia se estão a fazer sentir globalmente, “a interrupção propositada do actual ciclo agrícola da Ucrânia pela invasão russa é muito importante”, diz, por email, Kristina Hook, professora de Gestão de Conflitos na Universidade de Kennesaw, na Geórgia (EUA). O que está a acontecer fá-la pensar noutro período da história que ela estuda: o Holodomor, a Grande Fome provocada pelo regime soviético na Ucrânia entre 1932-1933, quando toda a produção cerealífera ucraniana foi apreendida por Estaline para distribuir por outros locais, igualmente afectados pela fome, mas possivelmente também para reprimir um incipiente movimento independentista, e que resultou na morte de pelo menos 3,5 milhões de pessoas.

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A disponibilidade de trigo está a ser severamente reduzida em seis países africanos que importam pelo menos 30% do seu trigo da Rússia e da Ucrânia, alertou a FAO VALENTYN OGIRENKO/REUTERS

“Quando vemos os militares russos a minar deliberadamente os campos agrícolas ucranianos – pondo em causa a alimentação da população no ano que vem, bem como a sua segurança económica futura –, podemos deduzir que a estratégia militar russa pretende não só subjugar a população ucraniana durante este período activo de conflito, mas também no futuro”, diz Hook, que tem estudado com Richard “Drew” Marcantonio a degradação ambiental provocada pela guerra que decorre no Leste da Ucrânia desde 2014 (no Donbass), entre Kiev e dois territórios separatistas pró-Moscovo.

Esta táctica não só destrói a comida da população ucraniana no presente como também a sua capacidade futura de plantar e colher alimentos. “O exército russo dá-nos um sinal profundamente perturbador. Mostra que está pronto para prejudicar as futuras colheitas ucranianas, as fontes alimentares, a sobrevivência e a base da economia ucraniana”, considera Hook.

“Foi documentada a colocação intencional de minas em terras agrícolas, e há algumas estimativas de que cerca de 83 mil quilómetros quadrados de terra tenham sido inutilizados por causa de munições não detonadas e minas”, salienta Richard “Drew” Marcantonio. “A longo prazo, isto é do interesse da Rússia, porque enfraquece a economia da Ucrânia, e os dois países competem em vários mercados (por exemplo, no de produção de trigo)”, acrescenta.

“Repete-se o padrão de produzir uma fome artificial na Ucrânia, como já vimos quando o Governo soviético apreendeu todos os recursos alimentares aos agricultores ucranianos. Mas deu um passo mais além, ao destruir também todos os equipamentos agrícolas, sementes e tudo o que os soldados soviéticos não conseguissem levar consigo, numa estratégia de controlo deliberado que acabou por se tornar uma fome artificialmente produzida e genocida”, adianta Kristina Hook, descrevendo o Holodomor.

Alastrar da crise no Donbass

Existia já uma crise ambiental no Leste da Ucrânia por causa da guerra. “A ocupação russa da região do Donbass criou vários problemas ambientais. Alguns são riscos agudos relacionados com potenciais danos em indústrias perigosas [e fuga de materiais tóxicos industriais], outros são problemas crónicos relacionados com interrupções na governação e, em particular, a inundação descontrolada de minas de carvão”, explica Doug Weir, do Observatório sobre Conflitos e o Ambiente (CEOBS, na sigla em inglês). “A herança disto irá perdurar décadas, e inclui a contaminação de aquíferos e massas de água.”

O exército russo potencia os efeitos ambientais, sublinha Weir. “As cidades da Ucrânia são muito industrializadas e a táctica russa de cerco e bombardeamento arrisca criar emergências ambientais, devido a danos em instalações industriais. Ataques contra infra-estruturas militares e comerciais críticas, ameaçam criar uma poluição duradoura”, explica.

Por outro lado, nunca vimos um conflito num país com uma indústria de energia nuclear tão desenvolvida como na Ucrânia. “Há grandes preocupações com a extraordinária ocupação russa de Tchernobil e da central nuclear de Zaporijia”, diz Doug Weir. Viveram-se momentos de ansiedade por causa do corte de energia durante alguns dias na central de Tchernobilonde há combustível nuclear gasto que tem de ser refrigerado continuamente. Mas os soldados russos que ocuparam Tchernobil cavaram trincheiras no solo da área dos 2600 quilómetros quadrados da zona de exclusão, a chamada Floresta Vermelha, porque tem níveis elevados de radioactividade. Embora não haja confirmação disto, diz-se que alguns terão sofrido níveis de radioactividade elevados. Só a passagem de tanques por aquela zona, ao mover o solo e levantar poeiras, fez aumentar os níveis de radioactividade ligeiramente.

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A medir a radiação nas trincheiras escavadas pelos soldados russos no solo da Zona de Exclusão de Tchernobil REUTERS/Gleb Garanich

“[O Presidente russo Vladimir] Putin provavelmente fez mais por acelerar o processo de desnuclearização na Europa do que qualquer ecologista contra a energia nuclear”, ironiza Ben Cramer. “Nem é preciso haver bombardeamentos, basta a ameaça”, salienta.

“É difícil dizer quais são as motivações dos militares russos [relativamente às centrais nucleares ucranianas], ou até se têm verdadeira consciência do que estão do que estão a fazer. Há uma grande variação na qualidade das forças no terreno, e quanto menos treino tiverem e menos profissionalizados forem os militares, mais provável é vermos actos sem sentido como [ataques a tiro à central de Zaporijia], o uso indiscriminado de armas”, diz Richard “Drew” Marcantonio.

“As centrais nucleares ainda são monitorizadas por agências nacionais e internacionais. Mas têm aumentado as limitações no acesso, na partilha de dados. Os problemas que surgem em locais sensíveis podem ser geridos de forma eficaz pelos serviços de emergência, mas provavelmente estes não poderiam cumprir a sua missão devido à guerra”, frisa o investigador norte-americano.

Nem crime nem castigo

Conseguiremos avaliar os danos causados pela guerra, inclusivamente os danos ao ambiente, e teremos os meios, ou o local para pedir as reparações devidas por eles? “A destruição ainda está a ser avaliada, mas nunca vi nenhum político a ser acusado deste tipo de crimes, a que chamamos ecocídio. Acho que é muito difícil, porque no quadro de uma operação, os militares tendem a dizer que cumprem as obrigações operacionais e fazem o que podem”, diz Ben Cramer.

No curto prazo, a poluição atmosférica causada pelos bombardeamentos será o maior efeito de poluição, diz Richard “Drew” Marcantonio. “Mas a longo prazo, a contaminação que penetra nos cursos de água através da chuva, os solos degradados pelas minas e munições não detonadas… Tudo isto tem efeitos que vão durar gerações, a não ser que se actue de forma intencional para os resolver (o que será caro)”, salienta o investigador.

A preocupação com os efeitos ambientais da guerra não é nova – os bombardeamentos intensivos com desfolhantes na Guerra do Vietname fizeram despertar essa consciência, recorda Cramer. Mas o assunto nunca teve estatuto de prioridade, embora na década de 1980 tenha havido um movimento para constituir uma quinta Convenção de Genebra dedicada aos crimes ambientais, diz. “O problema é que as Convenções de Genebra, desde o segundo protocolo, em 1977, já mencionam a maior parte das obrigações que os militares devem levar em conta”, diz.

Por exemplo, o artigo 35 do Protocolo Adicional de 1977, “proíbe o uso de métodos ou meios de fazer a guerra que tenham a intenção, ou que se espere que venham a causar danos graves, alargados e de longo prazo ao ambiente”. O artigo 54 assegura a protecção de “objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil”, e explicita que é proibido “matar à fome civis como método de fazer a guerra”. É também “proibido atacar, destruir, retirar ou inutilizar objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil, como alimentos, áreas agrícolas para a produção de alimentos, colheitas, gado, instalações de água potável e de irrigação”.

Sabia que...

Um tanque russo pode consumir qualquer coisa como 1000 litros de combustível por 500 quilómetros.

“Sou um pouco céptico, porque isto não tem sido respeitado. Pelo contrário, as Convenções de Genebra estão a ser cada vez mais desrespeitadas. Tanto do ponto vista humanitário como militar”, sublinha Ben Cramer.

“A Rússia acredita ainda que o muito permissivo quadro legal actual de protecção do ambiente em conflitos armados é adequado – embora não seja a única grande potência militar a assumir esta posição”, alerta Doug Weir.

“Muitos países estão reticentes. Mas vale a pena notar que, mesmo sem ser em contexto de guerra, os crimes ambientais não são mesmo ‘crimes’. A vasta maioria da poluição (seja ela poluição atmosférica tóxica ou emissões de gases com efeito de estufa) ou é legal ou simplesmente não é regulada”, nota Richard “Drew” Marcantonio. “Não existe uma legislação global que regule as emissões de partículas finas poluentes, por exemplo, ainda que esta seja a principal origem de mortalidade precoce e morbilidade humana. Portanto, na realidade, não é possível julgar em tribunal a maior parte da poluição, porque simplesmente não é considerada ‘um crime’, ainda que a poluição seja o maior perigo para a saúde em termos globais”, conclui.

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Ucraniano em cima de um tanque russo destruído:: é difícil fazer uma contabilidade das emissões de CO2 provocadas pela guerra EPA/OLEG PETRASYUK

No entanto, este ano, em Setembro, deveria concluir-se um processo que decorreu ao longo dos últimos dez anos na Comissão da Lei Internacional da ONU – um organismo consultivo – sobre o projecto para reforçar o quadro legal de protecção do ambiente antes, durante e após conflitos armados denominado Protecção do Ambiente em Relação aos Conflitos Armados (PERAC, na sigla em inglês), que até agora identificou 28 princípios, sobre os quais alguns Estados, entre os quais Portugal, se pronunciaram.

“Embora sejam princípios não vinculativos, são os passos em frente mais significativos desde a década de 1970. Portugal tem dado muito apoio a este processo e apelamos ao Governo para que agora se debruce sobre a forma como estes princípios serão postos em prática”, apela Doug Weir.

A pegada militar de CO2

“Por causa das alterações climáticas e da pegada ecológica militar das emissões de CO2, poderíamos decidir que não se faria mais guerra. Nenhum Estado aceitaria isso”, imagina Ben Cramer. Por isso os militares não são obrigados a reportar as suas emissões de gases com efeito de estufa – para o calcular, é preciso ir procurar dados que não são abundantes. Ainda assim, poderemos calcular a pegada das emissões de CO2 da guerra na Ucrânia? Se há estimativas de que a Rússia tenha 12 mil tanques, quanto combustível consomem, por exemplo?

“Isso obriga a cálculos complicados, comparações. Alguns desses tanques consomem quantidades espantosas de combustível, algo como mil litros por 500 quilómetros”, diz Ben Cramer. “Acho que podemos chegar a esse número dentro de algum tempo, mas é preciso calcular, por exemplo quantas horas de voo são gastas em bombardeamentos”, sublinha.

“Conseguimos mais ou menos fazer esses cálculos, mas leva muito tempo e haverá muita incerteza nos números”, diz, por seu lado, Richard “Drew” Marcantonio. “Por exemplo, quanto combustível estava nos depósitos de combustível que foram destruídos por ataques de míssil? Vai levar muito tempo até se encontrarem os dados sobre isso e não é uma prioridade neste momento. Mas alguém acabará por fazer o esforço de tentar fazer uma contabilidade holística das emissões. Suspeito é que vai demorar algum tempo até que isso aconteça, e provavelmente haverá muito debate sobre os métodos usados, falhas nos dados, e nunca se chegará a acordo”, reconhece.

Para fazer esses cálculos complicados, é preciso usar como termos de comparação os veículos e aviões dos exércitos europeus e norte-americanos. A título de exemplo, no ano passado o CEOBS foi encarregado pelo grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde no Parlamento Europeu de fazer uma estimativa da pegada de carbono do sector militar da União Europeia. Foi calculado que em 2019 o sector emitiu 24,8 toneladas de dióxido de carbono equivalente (uma medida internacional que tem como finalidade estabelecer a equivalência entre todos os gases com efeito de estufa e o dióxido de carbono). Isto equivale às emissões anuais de CO2 de cerca de 14 milhões de carros, dizia a organização que fez o cálculo, mas é considerada uma estimativa conservadora.

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Alerta para minas em Slaviansk REUTERS/Gleb Garanich

“As relações entre os combustíveis fósseis e a invasão são gritantes e deveriam encorajar a Europa e outros blocos a acelerar a transição para a energia renovável”, considera Doug Weir.

“Claro que não há guerras limpas, isso é uma ilusão, como pensar que podemos ter um campo de batalha sem mortos. Mas precisávamos de um critério para poder dizer quão destrutiva é uma guerra, uma espécie de escala de Richter, para medir não só as intenções como a capacidade de destruição”, conclui Ben Cramer.