Cadáveres nas ruas, casas a arder, sem água, comida ou aquecimento. Situação em Mariupol “é catastrófica”

Médicos Sem Fronteiras diz que é “imperativo” retirar rapidamente a população da cidade ucraniana cercada pelo exército russo. Retirada de cerca de 400 mil residentes prevista para este domingo voltou a falhar.

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Mariupol, cidade com 450 mil habitantes na Ucrânia, tem sido palco de bombardeamentos constantes @AYBURLACHENKO/Reuters

Cadáveres nas ruas, casas a arder, sem água, comida ou aquecimento: é este o actual cenário em Mariupol, cidade com 450 mil habitantes na Ucrânia, que tem sido palco de bombardeamentos constantes.

No sábado de manhã, a Rússia anunciou um cessar-fogo e a abertura de corredores humanitários para retirar os civis encurralados pelos combates em Mariupol, no mar Negro, e na cidade vizinha, Volnovakha, igualmente sitiada. Mas, logo a seguir, os ucranianos adiaram a retirada da população, invocando violações do cessar-fogo pelas forças russas, o que estas desmentiram. Neste domingo, a história repetiu-se: estava previsto um cessar-fogo e a retirada de cerca de 400.000 residentes de Mariupol a partir do meio-dia, hora local (10h em Lisboa), mas a abertura de corredores humanitários voltou a falhar, com os separatistas pró-russos do Leste ucraniano e a Guarda Nacional da Ucrânia a acusarem-se mutuamente de não terem estabelecido a passagem segura acordada.

Maxim, programador de 27 anos, reside em Mariupol e tentou escapar com os avós, no sábado, depois de ter sido informado sobre o cessar-fogo temporário. Porém, quando estava já pronto a arrancar ouviu explosões e foi obrigado a voltar para trás. O jovem conta à BBC que muitas pessoas dirigiram-se ao centro da cidade porque foram informadas de que haveria um cessar-fogo e autocarros prontos para as retirar dali, mas quando os bombardeamentos recomeçaram essas pessoas já não conseguiram regressar aos seus abrigos.

“Acolhemos muitas pessoas no apartamento. Elas são do lado esquerdo da cidade, dizem que está destruída. Todas as casas estão a arder e ninguém consegue apagar os fogos. Há muitos cadáveres nas ruas e ninguém os consegue carregar”, relata.

“O cessar-fogo foi uma mentira. Um lado nunca planeou parar de atacar”, acrescenta. “Se eles dizem que haverá um cessar-fogo amanhã [este domingo], teremos de tentar ir [embora], mas não sabemos se será real”, nota, antes ainda de saber que a retirada de civis prevista para este domingo foi também adiada.

Mostrando-se já “sem esperança”, Maxim lamenta: “A partir de agora fazemos o que temos de fazer a cada dia apenas para sobreviver e para que os nossos vizinhos sobrevivam. Não sei o que vem a seguir. Estamos muito cansados e não avistamos uma saída.”

Situação humanitária é “catastrófica”

A situação humanitária é “catastrófica”, segundo a organização não-governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras (MSF), que defendeu, no sábado, que é “imperativo” retirar rapidamente a população de Mariupol.

“Em Mariupol, a situação é catastrófica e piora de dia para dia”, disse Laurent Ligozat, coordenador de emergências da ONG na Ucrânia. “Hoje (sábado), já não há água; as pessoas têm enormes dificuldades de acesso a água potável e isso está a tornar-se um problema essencial. Já não há electricidade, já não há aquecimento. A comida está a acabar, as lojas estão vazias”, descreveu o responsável da MSF, a partir da cidade de Lviv, no Oeste do país.

Alex Wade, também coordenador de emergências da MSF na Ucrânia, explica num áudio partilhado no Twitter que a grande preocupação actualmente se centra em Mariupol. “A cidade foi fortemente bombardeada dia e noite nos últimos dias… supermercados foram atingidos… não há electricidade, não há aquecimento… não há água”, reafirma.

“Se a situação não for resolvida imediatamente — hoje, amanhã ou nos próximos dias — haverá uma emergência grave e um possível desastre”, acrescenta Alex Wade.

“Ninguém entra ou sai da cidade”

A MSF tinha já equipas naquela cidade portuária estratégica antes da invasão russa da Ucrânia, na semana passada. A ONG tem ainda no terreno pessoal, que ali está retido há vários dias.

“Desde há vários dias que simplesmente ninguém entra ou sai da cidade”, lamentou Ligozat, emitindo um apelo aos beligerantes para que permitam que os civis abandonem o local.

“É imperativo que esse corredor humanitário, que poderia ter sido criado hoje (sábado), mas realmente não foi, devido ao desrespeito do cessar-fogo, seja rapidamente criado para permitir às populações civis, às mulheres e às crianças, sair dessa cidade”, exortou.

Em comunicado, a MSF apela que todas as regras de guerra sejam cumpridas pelos militares envolvidos na guerra na Ucrânia e que sejam tomadas todas as precauções para não prejudicar os civis. “A passagem segura para aqueles que desejam e podem escapar deve ser garantida com urgência em Mariupol e em áreas afectadas pela guerra dentro da Ucrânia, independentemente do cessar-fogo ou da existência de corredores humanitários que possam ser implementados temporariamente”, lê-se na nota. A MSF destaca ainda que “aqueles que ficam para trás não podem perder o seu estatuto de civis”.

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Mariupol, Ucrânia Carlos Barria/REUTERS

“Cada situação é diferente, mas as décadas de experiência a trabalhar em situações de guerra mostraram-nos que corredores humanitários pontuais podem ser úteis, mas não são suficientes”, nota Stephen Cornish, director-geral da ONG citado em comunicado. “Várias vezes testemunhamos civis serem encorajados a abandonar [os locais de guerra] através de corredores de retirada de civis com um prazo determinado e depois aqueles que não podiam ou não queriam fugir foram recebidos com uma violência extrema e indiscriminada contra todos e tudo o que ficou para trás. Como resultado, muitas pessoas foram mortas ou mutiladas, incluindo muitos médicos e outros civis”, conclui.

A Rússia lançou na madrugada de 24 de Fevereiro uma ofensiva militar com três frentes na Ucrânia, com forças terrestres e bombardeamentos em várias cidades.

As autoridades de Kiev contabilizaram, até ao momento, mais de 2000 civis mortos, incluindo crianças, e, segundo a ONU, os ataques já fizeram cerca de 1,5 milhões de refugiados na Polónia, Hungria, Moldova e Roménia, entre outros países. Com Lusa

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