As centrais nucleares ucranianas estão seguras? Há formas mais fáceis de causar danos, dizem cientistas

Aumentar o clima de medo e impedir a produção de energia poderiam ser objectivos militares considerados pela Rússia. IAEA pede que centrais não sejam alvos na Ucrânia.

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A cúpula do segundo sarcófago de Tchernobil, em 2021 EPA/OLEG PETRASYUK

As quatro centrais nucleares ucranianas estão a funcionar normalmente, assegura a Energoatom, a empresa nacional de energia nuclear, com nove dos 15 reactores em funcionamento. No entanto, há militares russos a movimentar-se perto da maior de todas – a de Zaporizhzhia, a que fica mais perto da cidade portuária de Mariupol, onde tem havido intensos combates, salienta a Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA, na sigla em inglês), com o seu director, Rafael Mariano Grossi, a salientar que “qualquer acção militar que possa ameaçar a segurança da central deve ser evitada”.

Desde o início da invasão russa que paira a possibilidade aterradora de as centrais nucleares ucranianas poderem ser vítimas de um acidente de guerra – um bombardeamento que falha o alvo, por exemplo – ou de um ataque deliberado. “Mas há formas muito mais simples de provocar problemas e causar danos ao inimigo do que atacar centrais nucleares”, disse ao PÚBLICO Leon Cizelj, responsável da divisão de engenharia de reactores do Instituto Jožef Stefan, em Ljubljana, na Eslovénia.

Cizelj tem experiência em primeira mão deste tipo de ameaças. “A guerra na Ucrânia na verdade não é a primeira vez em que centrais comerciais de energia nuclear são ameaçadas por um potencial ataque militar. A primeira vez que aconteceu algo deste género foi durante a guerra da Eslovénia [da independência da Eslovénia da Jugoslávia], em 1991, quando a central nuclear de Krško esteve sob ameaça de um ataque aéreo da Força Aérea jugoslava [liderada por Slobodan Milosevic]”, recorda o cientista, membro da Sociedade Nuclear Europeia (Euronuclear), uma organização que junta 12 mil profissionais, cientistas, indústria e autoridades do sector nuclear.

“Nessa altura, eu era um estudante de doutoramento. Ainda tenho memórias muito nítidas das discussões que tive com os meus colegas mais velhos no abrigo subterrâneo. Pela primeira vez estávamos a encarar os riscos credíveis de um ataque militar a uma central nuclear”, recorda Cizelj. “Ao mesmo tempo, estávamos a discutir e avaliar estratégias muito práticas para minimizar os danos, em caso de um ataque.”

Violação da Carta da ONU

Esse ataque não se materializou. Na altura, ainda não tinha sido aprovada a resolução da assembleia da IAEA de 2009, que declara que “qualquer ataque ou ameaça contra instalações nucleares devotadas a objectivos pacíficos constitui uma violação dos princípios da Carta das Nações Unidas, da lei internacional e do estatuto da IAEA”, sublinha, num post no LinkedIn, Attila Aszodi, professor na Universidade de Budapeste (Hungria), especialista em energia nuclear e segurança. “Isto deve ser levado em conta pelos decisores políticos quando estiverem a determinar sanções”, sugere.

Se há formas mais simples de causar estragos ao inimigo do que atacar centrais nucleares, como diz Cizelj, há pelo menos dois objectivos que poderiam ser cumpridos com um ataque deliberado, realça: “O primeiro seria aumentar os medos já existentes em relação ao nuclear. O segundo seria impedir a produção de electricidade” – e cerca de metade da energia eléctrica ucraniana é produzida nas suas centrais nucleares.

Mas estes dois objectivos podem ser conseguidos mesmo sem atacar e causar estragos reais às centrais nucleares, sublinha Cizelj. “Para aumentar os receios normalmente é suficiente começar a falar acerca de um ataque iminente”, diz. E para deixar a rede eléctrica sem energia, é mais fácil deitar abaixo algumas torres de alta tensão, ao longo dos muitos quilómetros pelas quais se estende a rede, exemplifica o cientista.

Outra possibilidade seria a libertação de substâncias radioactivas para o ambiente – sublinhando esses riscos, a Ucrânia confirmou à IAEA que um depósito de resíduos nucleares na capital, Kiev, foi atingido por mísseis russos. Mas não há registo de danos no edifício nem de libertação de radioactividade, diz o comunicado da agência.

“É praticamente fazer isso [libertar substâncias radioactivas] por acidente. Tem de haver um enorme esforço deliberado e com muita energia, devido à construção extremamente resiliente das centrais nucleares, com paredes de cimento armado e recipientes de pressão”, assegura o cientista esloveno.

Se fossem de facto libertados materiais radioactivos, “a maioria ficaria na proximidade da central nuclear e seria sobretudo um risco para os trabalhadores da central e para os atacantes”, sublinha. “É preciso sublinhar que as centrais nucleares não podem explodir como bombas”, assegura Cizelj.

Significado simbólico de Tchernobil

Um outro risco que fica a pairar na nossa imaginação tem a ver com Tchernobil, a central a cerca de 80 km de Kiev cujo reactor 4 explodiu em 1986. Os restantes reactores da central foram desactivados e foi construído um sarcófago de cimento sobre o reactor acidentado, com duas camadas. “Este sarcófago duplo dá protecção adequada contra impactos ambientais, mas não foi concebido para resistir a ataques militares”, diz Attila Aszodi. Tchernobil foi ocupada por tropas russas, que assim passaram a ter responsabilidade pela sua segurança e integridade. “Podem tê-lo feito para evitar possíveis ataques simbólicos às instalações, mas podem existir outras razões. A sua motivação não é conhecida”, frisa o cientista húngaro.

Quais são os riscos reais de um ataque a Tchernobil, nomeadamente ao reactor 4? “Obviamente, dependeria muito do tipo de ataque. Mas esse ataque – ou a mera possibilidade do ataque – teria sobretudo um significado simbólico, porque o nome Tchernobil é conhecido em todo o mundo, e basta mencioná-lo para causar receio”, reconhece Attila Aszodi.

“A unidade 4 de Tchernobil poderia sobreviver a um pequeno ataque de artilharia sem libertar [radiação]. Um ataque maior poderia provocar uma libertação localizada, mas não é concebível que aconteça algo da magnitude do acidente de 1986”, assegura. “O reactor 4 não funciona desde 1986, a radioactividade sob os destroços reduziu-se muito, devido ao fenómeno do decaimento radioactivo [fenómeno estatístico que permite prever por quanto tempo determinada quantidade de átomos de um elemento produzirá emissões radioactivas] durante os últimos 36 anos. A temperatura no interior do edifício também é baixa, por isso não se espera que haja grandes libertações de radioactividade com efeitos a longa distância”, diz Attila Aszodi.

Mesmo tendo em conta todas estas condições, o director-geral da IAEA sublinhou, em comunicado, que a agência continua a seguir os desenvolvimentos na Ucrânia “com muita preocupação, em especial o potencial impacto do conflito na segurança das instalações nucleares”. “É extremamente importante que as centrais nucleares não sejam postas em perigo de forma alguma. Um acidente poderia ter consequências graves para a saúde pública e para o ambiente”, notou Rafael Mariano Grossi.

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