Paraísos fiscais foram refúgio de oligarcas russos, agora podem ser um garrote

Grandes e pequenos centros financeiros já cooperam a nível fiscal. Aqueles que não o fazem arriscam-se a sofrer retaliações. Estados Unidos atentos a quem ajudar magnatas. Resta saber o lugar da China.

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Protesto em Berlim, a 27 de Fevereiro, contra a invasão da Ucrânia pela Rússia EPA/FILIP SINGER

Muitos dos paraísos fiscais e opacos centros financeiros que serviram de refúgio aos activos financeiros e patrimoniais de magnatas russos próximos de Vladimir Putin já aderiram às novas medidas de cooperação internacional na área financeira e fiscal — e essa é uma trajectória firme que poderá criar dificuldades acrescidas aos oligarcas que tentem usar os territórios nos quais confiavam para contornar as sanções impostas pelo Ocidente.

Se auxiliarem os magnatas, as jurisdições arriscam-se elas próprias a ser confrontadas com medidas de retaliação lançadas pelos grandes blocos económicos, como os Estados Unidos e a União Europeia (UE). E a isso soma-se o leque de instrumentos financeiros e fiscais que os países ocidentais vão acumulando para detectar património (por exemplo, para saber onde estão as empresas que detêm os iates ou os imóveis dos oligarcas). E mesmo esses instrumentos estão em actualização para responder aos desafios dos criptoactivos, um dos potenciais desestabilizadores imediatos da rota das restrições.

Se, à primeira vista, poderia pensar-se que a opacidade de algumas jurisdições pode funcionar como uma válvula de escape para os oligarcas russos esconderem património ou triangularem operações financeiras como forma de ludibriar as sanções, a verdade é que alguns importantes centros financeiros percepcionados como paraísos já aderiram às novas regras de cooperação para combater os crimes fiscais, participando, por exemplo, na troca de informação que permite descobrir se um cidadão ou uma empresa tem conta bancária e rendimentos num determinado território, ou aceitando acções de controlo pedidas por outros países para identificar beneficiários de activos e empresas.

Esse barco da cooperação inclui não apenas alguns dos principais territórios de abrigo de magnatas russos — como a Suíça, o Reino Unido ou Chipre, co-autores das sanções em curso —, mas também centros financeiros que podem ser escolhidos como destino dos activos financeiros e local de criação de empresas fictícias para controlar activos patrimoniais noutros territórios (por exemplo, os Emirados Árabes Unidos, a China, Hong Kong ou Singapura).

As autoridades tributárias e outros organismos públicos dos países da União Europeia (como Chipre, Malta ou Portugal), do Reino Unido, da Suíça ou dos Estados Unidos têm hoje capacidade para identificar de forma mais célere os activos financeiros e patrimoniais detidos nos seus territórios pelos cidadãos russos (em parte porque essa informação tem de estar pronta a ser trocada com outros Estados). E isso dará instrumentos às autoridades nacionais para travar o raio de acção dos cidadãos russos de elevado património e capacidade financeira, em função das decisões que os respectivos governos nacionais tomarem para pressionar Moscovo na guerra contra a Ucrânia.

Por outro lado, a própria União Europeia e os Estados Unidos já usam instrumentos para isolar e pressionar os paraísos fiscais externos que não são cooperantes (a nível financeiro e fiscal) e que não cumprem as regras de prevenção de lavagem de dinheiro, estratégia que pode acentuar-se com o objectivo de isolar determinados centros financeiros condescendentes com oligarcas próximos de Putin (por hipótese, aplicando as chamadas “medidas defensivas” contra o Panamá, actualmente na lista negra da UE dos paraísos fiscais, se este território facilitasse o raio de acção aos magnatas).

Ao mesmo tempo, a exclusão de importantes bancos da Rússia do sistema de pagamentos SWIFT ajudará a limitar o acesso dos magnatas aos fundos detidos nestes centros financeiros, como sublinhou esta semana a associação cívica Transparência e Integridade (braço português da Transparência Internacional), citada pelo Jornal de Negócios.

O advogado Nuno Sampayo Ribeiro, especialista em direito fiscal e professor do Instituto de Formação Bancária (IFB), lembra que a “cooperação internacional e europeia criou meios que viabilizam a detecção pelas autoridades do ‘who owns what’ [quem detém o quê] através de meios que perfuram as montagens ditas ‘testas de ferro’, e permitem o rastreio de operações de triangulação”, o que possibilitará um “aprofundamento significativo” desses meios de cooperação “na luta contra os fluxos financeiros ilícitos”.

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Há já uma “nova geração de meios jurídicos e tecnológicos de grande fôlego cujos contornos gerais estão traçados” e que, antevê o fiscalista, “encontrarão no contexto criado pela intervenção militar ilegal e ilegítima da Rússia na Ucrânia condições de validação política e operacionalização imediata”.

Recolha de provas

Esse sinal não tardou a chegar de Washington, com o Departamento de Justiça norte-americano a anunciar, na última quarta-feira, a criação de um grupo de trabalho destinado a “responsabilizar oligarcas russos corruptos”, com pessoal especializado na aplicação de sanções, confisco de bens, investigação em segurança nacional, recolha de provas, aplicação das leis contra o branqueamento de capitais e a evasão fiscal.

Essa unidade, chamada Task Force KleptoCapture, irá usar os meios “civis e penais” norte-americanos para apreender activos “provenientes de conduta ilegal”; e irá seguir quem tente contornar as sanções através de esquemas de branqueamento de capitais ou quem, não sendo abrangido pelas restrições, facilite a vida aos visados, por exemplo violando os deveres de identificação dos clientes (em operações financeiras, compra de imóveis ou aquisição de bens, por exemplo).

Em Bruxelas, a resolução do Parlamento Europeu que condena a invasão da Ucrânia converge para aí. Os 637 eurodeputados que votaram a favor (houve 13 votos contra e 26 abstenções) pressionam a Comissão Europeia e os 27 governos a fazer “cumprir de forma coerente as normas existentes em matéria de combate ao branqueamento de capitais” e a reforçar a “transparência” em relação “aos fundos depositados ou despendidos na UE pela elite russa”. Um movimento que, a concretizar-se, coloca pressão sobre as jurisdições de fora da UE que não cumpram com os padrões definidos a nível europeu.

Concentração em offshores

Um estudo elaborado por peritos da Direcção-Geral da Fiscalidade da Comissão Europeia em 2019 concluía que, em 2016, os russos tinham depositado em centros financeiros offshore 193,1 mil milhões de dólares (174 mil milhões de euros). No entanto, por causa do peso económico da Rússia, a 11.ª potência em 2020, os activos dos russos só representam uma pequena fatia de todo o valor confinado em paraísos fiscais (2,45% do total em 2016). Mas isso não significa que os capitais colocados fora pelos magnatas sejam residuais em relação ao que possuem.

Os economistas Annette Alstadsætera, Niels Johannesenb e Gabriel Zucman concluíram em 2018 que os 0,01% mais ricos da Rússia detêm mais de metade da sua riqueza fora do país. Um dos destinos importantes é a Suíça, “o primeiro país a desenvolver uma indústria internacional de gestão de fortunas, na década de 1920”, muito procurada pelos mais ricos, salientam os autores.

O facto de a Suíça abdicar da neutralidade e participar nas sanções é mais um sinal de cooperação ocidental, com o congelamento imediato dos bens de Putin, do primeiro-ministro, Mikhail Michoustine, do ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, e de uma série de personalidades e empresas próximas do Kremlin.

Ao mesmo tempo, de alguns países da UE ao Reino Unido, dos Estados Unidos ao Japão vão surgindo anúncios de congelamento de activos de oligarcas (aconteceu em França com um iate de Igor Sechin, líder da petrolífera estatal Rosneft). Só nas últimas semanas, os 20 maiores milionários russos perderam 80 mil milhões de dólares em activos, um terço da sua riqueza, diz a CNBC com base num índice da Bloomberg.

O papel da China

A Forbes salientava como Putin, a partir de 2018, frente às sanções aplicadas pelos Estados Unidos a sete milionários russos, ergueu duas zonas especiais — dois paraísos fiscais — para receber os magnatas visados pelas restrições externas, concedendo-lhes uma isenção sobre os dividendos e os ganhos de capital ao transferirem empresas para essa zona especial, como contrapartida de investimentos avultados.

Nuno Sampayo Ribeiro pensa que a presença nos paraísos fiscais, na era da adesão aos mecanismos de cooperação fiscal, poderá constranger a movimentação de capitais dos oligarcas, pelo “elevado risco legal e reputacional” que acarreta, “incluindo o resultante do escrutínio que o Consórcio Independente de Jornalistas de Investigação e outras entidades irão efectuar” à presença dos milionários nesses territórios e às eventuais movimentações que venham a fazer. Será a “verificação de que o braço da lei e do online chega a todo o lado, e de que os escândalos [da] Mossack Fonseca, Luanda Leaks ou [do] Credit Suisse foram só os últimos antes do próximo”, antevê o fiscalista, que acompanha as matérias de segurança nacional, dinheiro digital e cibersegurança.

Ao mesmo tempo coloca-se a questão das alianças geopolíticas e, quanto a isso, a revista britânica Economist nota como o fortalecimento das relações Rússia-China, a aposta chinesa na criação de um sistema tecnológico de pagamentos alternativo ao SWIFT, o desenvolvimento das moedas digitais e a possível aposta do banco central russo em estabelecer a divisa chinesa como moeda de reserva, poderá ajudar Moscovo a amortecer o impacto das sanções.

Não é, no entanto, claro até que ponto alguns territórios, em particular a China, aceitarão ser lugar de abrigo e funcionar como válvulas de escape para a oligarquia russa.

Sampayo Ribeiro nota que a evolução da “cooperação internacional em matéria de transparência fiscal e financeira confirma a acção da China” como uma força motora na origem desse aprofundamento e, por isso, prevê que a segunda maior potência global exercerá uma “trajectória de controlo e fiscalização” que priorizará “os compromissos internacionais e o reforço do seu soft power [poder de persuasão] e country branding [imagem de marca], bem como a afirmação da reputação do seu sector empresarial, financeiro e personalidades”.

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