Aliados ou alinhados? Invasão da Ucrânia testa solidez da parceria “sem limites” entre China e Rússia

Xi e Putin têm exibido uma frente unida anti-EUA, mas a resposta de Pequim à agressão militar russa tem-se pautado pela cautela e pela insistência na diplomacia, sempre de olho na economia. Foco mediático na Europa abre espaço para o investimento chinês na sua vizinhança.

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Vladimir Putin, Presidente da Rússia, e Xi Jinping, Presidente da China ALEXEI DRUZHININ / KREMLIN / SPUTNIK / EPA

“As partes opõem-se a novas expansões da NATO, pedem à Aliança do Atlântico Norte para abandonar as abordagens ideologizadas da Guerra Fria; respeitar a soberania, segurança, interesses dos outros países e a diversidade do seu percurso civilizacional e histórico-cultural; e que trate o desenvolvimento pacífico dos outros Estados de forma objectiva e justa”.

Vinte dias depois desta declaração, inserida no comunicado conjunto de Xi Jinping e de Vladimir Putin, que se reuniram no dia 4 de Fevereiro, em Pequim, por ocasião da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, para formalizarem uma “parceria sem limites” entre a República Popular da China e a Federação Russa, as Forças Armadas russas deram início à invasão da Ucrânia.

Teria o Presidente russo informado ou obtido luz verde do seu homólogo chinês para mandar os tanques e os aviões avançarem para o território ucraniano, em nome da reconquista da “terra ancestral russa” e da “desnazificação” do país? Teria pedido à China para ajudar a suportar as consequências económicas e diplomáticas da agressão militar? Ou teria simplesmente escondido o jogo a Xi, insistido na narrativa da altura de que a ameaça de guerra na Ucrânia não era mais do que o resultado da “histeria” do Ocidente?

É impossível saber. Mas sabe-se que depois desse encontro de alto nível, Putin e Xi concordaram que está em curso um processo de “redistribuição do poder” na ordem mundial, e que promoveram os seus países como “os mais importantes parceiros estratégicos”, “os amigos que pensam da mesma forma” e as potências que apostam tudo na “coordenação do apoio mútuo”.

Nesse sentido, poucos se espantariam se a China tivesse vindo a terreiro defender ferozmente a legitimidade da Rússia para iniciar uma guerra contra o seu vizinho. Mas não foi isso que aconteceu. Mesmo rejeitando utilizar o termo “invasão” e não fazendo quase referências directas ao conflito em curso, o Governo chinês tem insistido, vezes sem conta, e através de uma estratégia de comunicação cautelosa e comedida, que é na diplomacia e no diálogo que está a chave para a resolução da crise ucraniana. E não nas sanções.

“Todas as partes envolvidas devem exercer moderação, reconhecer a importância de implementar o princípio da indivisibilidade da segurança, aliviar a situação e resolver as diferenças por meio de diálogo e negociação”, afirmou recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, que dias antes da invasão já tinha dito, em plena Conferência de Segurança de Munique, que a China apoiava a “soberania” e a “integridade territorial de qualquer país” e que “a Ucrânia não era excepção”.

“A actual situação da Ucrânia é resultado de muitos factores complexos. A China vai posicionar-se sempre de acordo com o desenvolvimento da própria questão. Acreditamos que todos os países devem resolver disputas internacionais por meios pacíficos”, acrescentou Zhang Jun, embaixador chinês nas Nações Unidas.

A isto, Pequim somou uma abstenção – e não um voto contrário – na votação de sexta-feira de uma resolução condenatória da acção militar russa no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Horas antes, depois de Xi e Putin terem falado ao telefone sobre a guerra, a imprensa estatal chinesa citava a mais ambígua das mensagens do Presidente chinês: “A China apoia a Rússia e a Ucrânia para resolverem a questão através da negociação”.

Interesses e incompatibilidades

Se a parceria sino-russa não tem limites, como propalado pelos seus líderes em Pequim, como se explicam, então, as reservas chinesas? Sugestões não faltam e podem incluir aqueles interesses geopolíticos e económicos da China que não são propriamente compatíveis com o apoio a uma agressão militar num território fundamental para o megaprojecto de infra-estruturas da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, de acordo com a designação oficial chinesa), como é a Ucrânia, ou os riscos inerentes à transformação da China numa via de escapatória para o Kremlin fintar as sanções económicas impostas pelo Ocidente.

“Se Pequim conseguisse aquilo que gostaria, manteria laços fortes com Moscovo, salvaguardaria a sua relação comercial com a Ucrânia, manteria a União Europeia na sua órbita económica e evitaria o alastramento, para si, das sanções dos Estados Unidos e da UE; ao mesmo tempo, prevenia que as relações com os EUA se deteriorassem significativamente”, elencam Jude Blanchette e Bonny Lin, especialistas em Estudos Chineses no think tank norte-americano Center for Strategic and International Studies.

“Garantir qualquer um destes objectivos pode muito bem ser possível. Alcançá-los a todos não”, concluem os investigadores, num artigo publicado na revista Foreign Affairs.

Por muito que a China partilhe com a Rússia a oposição ao alargamento da NATO – até porque tem de lidar, agora, na sua própria vizinhança, com o AUKUS, a nova aliança militar no Indo-Pacífico que junta EUA, Reino Unido e Austrália –, um apoio oficial a uma invasão militar que, entre outras justificações, assenta no respaldo das províncias separatistas no Leste ucraniano, poderia ser contraproducente para quem enfrenta os seus próprios desafios secessionistas, como são os casos do Tibete ou de Xinjiang, e as suas próprias disputas de ordem constitucional, como em Hong Kong e, de certa forma, em Taiwan.

Por outro lado, uma condenação da agressão russa também se poderia revelar problemática para as aspirações revisionistas e territoriais de Pequim no Mar do Sul da China, no Mar Oriental da China, na zona de fronteira dos Himalaias, na Mongólia ou no Sudeste Asiático.

E, depois, há o pragmatismo económico; aquele que tem guiado o Partido Comunista Chinês em praticamente todas as decisões geopolíticas que tomou nos últimos anos.

A China é o maior parceiro económico tanto da Rússia como da Ucrânia, por um lado, e Xi até celebrou recentemente, com Volodimir Zelensky, Presidente ucraniano – transformado em inimigo ‘número um’ do Kremlin por estes dias –, o 30.º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre Pequim e Kiev.

Por outro, aplicar sanções a Moscovo, como defendem os países ocidentais, seria contraditório com o compromisso chinês de importar mais gás natural e petróleo russo ou de aumentar a utilização do renminbi – em vez do dólar norte-americano – nas trocas comerciais entre os dois países.

Para além de princípio orientador, a dimensão económica é, na verdade, uma vantagem que Xi tem sobre o próprio Putin e que funciona como dissuasor de quaisquer pressões que o Presidente da Rússia possa querer exercer sobre o líder chinês, para o forçar, por exemplo, a declarar um apoio mais resoluto à causa bélica russa.

“A relação [entre China e Rússia] é entre iguais porque o Sr. Xi permite que assim seja. Economicamente, a China e a Rússia não estão na mesma liga. A economia chinesa é aproximadamente seis vezes maior do que a russa; a China é o principal parceiro económico da Rússia, mas a Rússia nem consta do seu top-10”, lembra o historiador Serguei Radchenko.

“[Rússia e China] estão alinhados, e não aliados, e este arranjo dá a cada um certo grau de flexibilidade, que permite que os seus interesses convirjam ou divirjam consoante a situação o exige”, sublinha, num artigo publicado na revista The Economist.

Oportunidades e desafios da guerra

Numa relação entre duas potências cujo principal laço de união é, mais do que uma questão de valores – orientam-se por princípios autoritários, é certo, mas ideologicamente separados –, a oposição conjunta a um modelo concreto de ordem global, liderado pelos Estados Unidos, a ambiguidade e a defesa do princípio da não-interferência parecem ser, por enquanto, e de um ponto de vista puramente estratégico, a melhor abordagem para a China seguir.

Até porque o foco do Ocidente na Ucrânia pode dar tempo a Pequim para se dedicar ao Indo-Pacífico, enquanto assiste ao desgaste que a guerra europeia vai causar aos EUA e aos seus aliados.

“O melhor cenário possível para a China é aquele em que o Ocidente e a Rússia estão com as espadas desembainhadas, dando a Pequim o espaço e o tempo necessários para cultivar o seu poder e influência”, escreve na revista The Diplomat Zi Yang, especialista em Política Chinesa da Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura.

“A China está a assistir atentamente ao estilhaçamento da paz europeia enquanto medita sobre qual é a melhor forma de maximizar os seus interesses, empurrando os dois extremos para o centro”, conclui Yang.

Resta saber, no entanto, como pode a China prosperar economicamente se grande parte do globo estiver envolvido numa guerra – seja ela militar, política ou económica – na Ucrânia. Nesse sentido, considera Radchenko, o conflito armado e as suas consequências são, em si, um enorme teste à durabilidade da parceria entre China e Rússia. Particularmente, destaca, “num ambiente geopolítico em mudança”.

“Quanto mais próximas a China e a Rússia se tornarem, mais os dois [países] vão assumir que podem contar um com o outro em momentos de necessidade”, diz o historiador. “Mas com as antigas rivalidades geopolíticas a reemergirem na Europa e na Ásia, pode não faltar muito tempo até o Sr. Putin e o Sr. Xi darem por si na desconfortável posição de terem de destrinçar as diferenças entre um alinhamento e uma aliança formal”.

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