Que efeitos terá a guerra na economia?

Aumento da inflação, abrandamento do consumo e investimento e instabilidade dos mercados financeiros são alguns dos efeitos esperados no actual cenário de guerra, que podem ainda ser agravados se se confirmar um cenário de sanções económicas de larga escala

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Petróleo ultrapassou esta quinta-feira a fasquia dos 100 dólares por barril, algo que não acontecia desde 2014 EPA/JUSTIN LANE

O nervosismo a que se assiste nos mercados nas horas seguintes à entrada das forças militares russas na Ucrânia, com quedas dos índices bolsistas e aumentos dos preços do petróleo e dos cereais, são apenas uma primeira amostra do impacto que a economia mundial pode sofrer num cenário de guerra e sanções económicas de larga escala. Portugal, embora com uma exposição directa relativamente reduzida às economias russa e ucraniana, não conseguirá, ainda assim, escapar às consequências negativas do conflito.

Que economias têm mais a perder com o conflito?

Sem dúvida que as economias potencialmente mais afectadas serão a Ucrânia e a Rússia. A Ucrânia porque passa a ser um cenário de guerra, com paragens drásticas na actividade económica e uma dramática destruição de capital físico e humano. A segunda porque irá ser alvo de sanções das principais economias do Ocidente, que têm o potencial para limitar as suas exportações e cortar o acesso ao financiamento, criando as condições para uma desvalorização da divisa (que já está a acontecer), subida da inflação e provavelmente recessão.

E que efeitos podem ser sentidos no resto do mundo?

O resto das economias, em particular as europeias, não escapam ao choque negativo que resulta do conflito. É verdade que Rússia e Ucrânia têm uma dimensão relativamente reduzida à escala global. O PIB russo, em termos nominais, é cerca de 10 vezes menor do que o chinês e fica apenas ligeiramente acima do espanhol. Mesmo em termos comerciais, se, para a Rússia, a União Europeia é o destino de metade das suas exportações, para os países da UE, a Rússia não representa mais do que 5% do seu comércio total.

No entanto, a economia russa tem algo que é importante para a generalidade dos países: petróleo e gás natural. E a Ucrânia tem os cereais.

Como é que o impacto negativo será sentido?

Um primeiro choque pode vir de um efectivo corte das relações comerciais entre as duas partes. A Europa tem uma dependência significativa da Rússia como fornecedor de petróleo e de gás natural e, se essas importações deixassem de ser realizadas (para já, tal ainda não aconteceu), poderia haver problemas em alguns países da UE, principalmente os da Europa de Leste e Central.

No caso da Ucrânia, o que está em causa é o fornecimento de cereais. Em 2020 e nos primeiros 10 meses de 2021 a Ucrânia era o quarto mercado mais importante de importações agro-alimentares para a União Europeia, especialmente milho e trigo.

Desde esta quinta-feira, depois da decisão de Kiev de encerrar a navegação comercial nos portos do país, no Mar Negro, o fornecimento de carga por via marítima de e para a Ucrânia está suspenso, o que pode vir a criar maior pressão fornecimento mundial de cereais.

E o que acontece aos preços?

Mesmo sem que se concretize uma interrupção total das exportações da Rússia, um cenário de subida dos preços dos combustíveis e dos produtos alimentares parece inevitável, e já está aliás a verificar-se. Esta quinta-feira, nos mercados internacionais, o cenário confirmou todos os receios: os preços do gás natural chegaram a estar a subir 45%, o barril de petróleo superou a fasquia dos 100 dólares pela primeira vez desde 2014 (quando a Crimeia foi anexada pela Rússia) e os preços da electricidade tocaram em novos máximos históricos no mercado ibérico.

Nos cereais, a cotação do milho e do trigo registaram, esta quinta-feira, subidas da ordem dos 10%, atingindo, no caso deste último, o valor mais elevado dos últimos dez anos.

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Esta subida de custos acontece, ainda para mais, num momento em que a economia mundial já enfrenta uma alta da inflação muito significativa, que já vinha sendo motivada em parte pelo aumento dos custos dos bens energéticos.

O que pode acontecer à economia europeia?

Um aumento dos custos dos bens energéticos e alimentares, combinados com a incerteza trazida por um conflito militar de grandes dimensões, é a receita perfeita para que os agentes económicos, com menos poder de compra, retraiam os seus níveis de consumo e adiem as suas decisões de investimento.

Tudo junto – e com os bancos centrais de mãos atadas para darem estímulos à economia – torna-se provável um abrandamento da economia, se não mesmo uma estagnação. O banco norte-americano foi o primeiro a baixar as suas previsões para o crescimento da economia da UE durante este trimestre, de 1,5% para 1%, e, numa perspectiva ainda mais sombria, Vítor Constâncio, ex-vice presidente do BCE, alertou esta quinta-feira na sua conta do Twitter que, num cenário de sanções totais, uma recessão na Europa pode ser inevitável.

E Portugal? Que impactos serão sentidos no seu comércio com a Rússia e a Ucrânia?

A economia portuguesa é, devido essencialmente à posição geográfica do país, uma das menos expostas da União Europeia às economias russa e ucraniana. Por isso, num cenário de corte dos fluxos comerciais e de investimento entre Portugal e estes dois países, seja por causa de sanções, seja por causa do conflito militar, o efeito em indicadores como as exportações ou o investimento seria relativamente mais pequeno no caso da economia portuguesa do que de outras economias europeias.

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No comércio de bens, a Rússia é o 13.º fornecedor de Portugal, representando 1,29% dos fornecimentos e apenas o 37.º cliente, com 0,28% da quota de exportações. Já a Ucrânia, é o 68.º cliente de Portugal (absorvendo 0,06% das exportações de bens) e o 30.º fornecedor (0,36% das importações).

Alguns sectores de actividade, contudo, têm mais a perder do que outros. Portugal vende à Rússia principalmente cortiça, enchidos, calçado, vinho e ovos. E a Rússia vende fundamentalmente combustíveis minerais. O saldo foi claramente deficitário para Portugal, de 890 milhões de euros.

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No caso da Ucrânia, o principal produto vendido por Portugal é a cortiça, enquanto que no sentido contrário o comércio é dominado pelo milho. O saldo comercial é negativo em cerca de 260 milhões de euros.

Em 2020, havia cerca de 900 empresas portuguesas a exportar para a Rússia e Ucrânia.

E o turismo?

Mais uma vez por causa da distância, os volumes de turistas russos e ucranianos a chegar a Portugal não estão entre os mais significativos. No entanto, neste caso, a balança para Portugal é positiva e esse saldo pode ser perdido. As vendas de serviços de turismo à Rússia totalizaram 54,2 milhões de euros em 2021, enquanto para a Ucrânia, o valor foi de 35,5 milhões.

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Que investimento pode ser perdido?

Eventuais sanções europeias contra a Rússia podem também travar o volume de investimento directo russo em Portugal, que tem revelado uma tendência de subida. Cresceu de 10 milhões de euros em 2017 para 58 milhões em 2021. O stock de investimento russo em Portugal subiu assim de 166 milhões em 2017 para 305 milhões em 2021.

De qualquer modo, a Rússia tem pouca representatividade no investimento directo estrangeiro (IDE) em Portugal: apenas 0,2%.

Esta reduzida exposição protege o país do choque?

Não. Portugal, não só não fica imune aos aumentos de preços que se estão já a registar nos mercados internacionais de energia e de produtos alimentares, como pode também vir a sofrer o impacto negativo de um abrandamento da economia mundial e, particularmente da europeia.

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O choque proveniente do aumento dos custos energéticos pode ser particularmente significativo. Para as famílias e para as empresas, especialmente aquelas que precisam intensamente de energia produzirem, o aumento da factura energética já tem vindo a condicionar de forma significativa a sua actividade. Uma nova subida, para níveis recorde, promete reduzir mais o poder de compra das famílias e afectar a viabilidade das empresas, limitando-lhes a capacidade para investir.

Junta-se a isto a possibilidade, por causa de uma ainda maior persistência da inflação na zona euro, de o Banco Central Europeu (BCE) ter de adoptar, a prazo, uma política monetária mais restritiva, o que, para os portugueses, se reflecte imediatamente num agravamento das suas prestações de crédito.

Como é que o conflito pode afectar as decisões do BCE?

O ataque russo aconteceu numa altura em que, no Banco Central Europeu, todos se estavam a preparar para, na reunião de 10 de Março, dar um passo decisivo na retirada das políticas de apoio à economia, confirmando o fim do programa de compras de dívida lançado durante a pandemia, definindo uma data para o fim do programa de compra de dívida que já existia antes da pandemia e preparando o caminho para o começo da subida das taxas de juro, talvez já este ano.

Agora, com a incerteza criada pelo conflito militar, aumentaram as dúvidas em relação ao que o BCE poderá vir a fazer. Por um lado, o banco central vai ter de levar em conta que existe o risco de retoma da economia europeia abrandar ou mesmo ficar adiada. Isso é motivo para fazer o BCE reavaliar a rapidez com que quer deixar de ajudar as economias com as suas taxas de juro nulas e as suas compras de dívida pública.

Por outro lado, uma das consequências do conflito militar e da aplicação de sanções pesadas à Rússia também pode ser uma subida da inflação, tendo em conta principalmente as pressões que vão ser sentidas nos mercados energéticos e alimentares. No actual cenário em que a inflação já se encontra ao nível mais alto desde a criação do euro, esse é um motivo para que o BCE fique ainda mais preocupado com a possibilidade de um descontrolo dos preços, que o obrigue mais tarde a subir as taxas de juro de forma agressiva.

É este aumento da probabilidade de entrada em estagflação – inflação alta e estagnação da economia em simultâneo – que vai dominar os debates dos responsáveis do BCE durante as próximas semanas, forçando-os numa primeira fase a “esperar para ver” quais serão as verdadeiras consequências da economia, encontrando uma solução de equilíbrio. Como escreveu Vítor Constâncio na sua conta do Twitter, “o BCE, enfrentando uma dinâmica de inflação mais baixa e muito menos consolidada [que a dos EUA], deverá reavaliar a sua retórica recente mais agressiva, mas pode decidir ainda assim uma aceleração do tapering [retirada das políticas expansionistas]”.

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