O estudo da Fundação Gulbenkian

A rejeição do autoritarismo por apenas 37% dos portugueses tem muito mais a ver com a falta de elevação e de rigor nos debates parlamentares e eleitorais do que com uma sinistra propensão para o autoritarismo.

A Fundação Gulbenkian publicou recentemente um interessante estudo sobre os valores dos portugueses. Apenas 37% dos inquiridos consideraram que seria mau/muito mau Portugal “ter um líder forte que não tenha que se preocupar nem com o Parlamento nem com eleições.” A maioria dos portugueses (86%) acreditam que “ter um sistema político democrático é bom/muito bom” e 66% crêem que seria mau/muito mau “serem as forças armadas a governar o país”. Como explicar a discrepância evidente entre o apoio maioritário pela democracia (86%) e o facto de só 37% dos nossos concidadãos rejeitarem um líder autoritário?

Segundo o jornal Expresso, a “hipótese” avançada pelos autores do estudo é de que este “desencontro” resulta de uma “definição imperfeita da democracia entre os inquiridos”. Podemos presumir, portanto, que boa parte dos inquiridos simplesmente não sabe que a democracia é incompatível com a existência de um líder forte que não tenha que lidar com o Parlamento ou com eleições? Parece-me evidente que não. Porquê? O 25 de Abril é, certamente, um dos eventos históricos mais debatidos em Portugal. Por boas razões, é há muito interpretado publicamente como uma ruptura com o Salazarismo, um regime autoritário e decididamente personalista. Ou seja, a persona histórica de Salazar, líder forte que pouco se importava com eleições ou com o Parlamento, foi inscrita no imaginário político português como a antítese da democracia que foi instituída no dia 25 de Abril de 1975, com a realização das primeiras eleições livres. É implausível supor, portanto, que mesmo uma “definição imperfeita” da democracia negligencie esta muito explicitada e reconhecida fissura entre o passado autoritário de outrora e a democracia que o 25 de Abril de 1974 inaugurou. Gostaria de sugerir uma hipótese distinta da que é proposta pelos autores do estudo.

Reconsideremos a frase que consta no dito estudo e que foi rejeitada por apenas 37% dos inquiridos: “Ter um líder forte que não tenha que se preocupar nem com o Parlamento nem com eleições é mau/muito mau.” Suspeito que a percepção dos portugueses da política parlamentar e dos processos eleitorais seja maioritariamente negativa. É provável que esta avaliação do Parlamento e das eleições tenha mais que ver com o resultado obtido do que com uma preferência substantiva ou incondicional por um líder forte. Porque é que o Parlamento e as eleições tendem a ser menos bem vistos do que, por exemplo, a Presidência da Republica? A primeira razão tem que ver com a maior visibilidade do Parlamento e das eleições. As instituições mais visíveis tendem a ser as mais visadas pela ira dos cidadãos.

Todavia, a maior visibilidade das actividades parlamentares e dos processos eleitorais não me parece, per si, suficiente para explicar a baixa percentagem de rejeição de um líder forte. Devemos caracterizar a natureza da visibilidade em causa. A nossa percepção do Parlamento e das eleições é inevitavelmente afectada pelo facto de que estes são processos políticos onde o conflito impera. O debate incessante, facilmente associado à percepção da disfuncionalidade e da indecisão em momentos de crise e não só, o uso excessivo da retórica e dos ataques pessoais, a explicitação continua de contradições entre o que foi dito e feito no passado com as posturas actuais, a sobreposição da parcialidade partidária à imparcialidade e a distorção deliberada, não raramente flagrante, das mais elementares verdades são apenas algumas das mais comuns queixas do cidadão comum.

Por outras palavras, diria que a rejeição do autoritarismo por apenas 37% dos portugueses tem muito mais a ver com a falta de elevação e de rigor nos debates parlamentares e eleitorais do que com uma sinistra propensão para o autoritarismo. Não obstante, julgo que seria interessante explorar uma outra hipótese: será descabido falarmos de uma paradoxal democratização do salazarismo ou, pondo as coisas de outra forma, de uma sublimação do passado e da mentalidade salazarista? Quantos serão os salazarinhos que sobreviveram ao colapso do Salazarismo?

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