Ihor: pedimos desculpa; exigimos culpa

Conheço Eduardo Cabrita, sei do seu apego genuíno à causa dos direitos humanos e, por isso, acredito que saberá apresentar a sua demissão nos próximos dias.

1. Um assassinato no aeroporto. Um assassinato de um cidadão estrangeiro, de um possível migrante. Um assassinato que não ocorreu no deserto líbio às mãos de traficantes. Um assassinato que não foi obra de um solavanco ou empurrão para o cemitério mediterrânico num bote apinhado. Um assassinato que não sobreveio num tenebroso campo de acolhimento, algures em Lampedusa, Lesbos ou Malta. Um assassinato que não resultou da retórica anti-migrantes de Orbán ou Kaczinsky. Um assassinato que não brotou da secular deformação racista da polícia americana.

Um assassinato no aeroporto, no aeroporto de Lisboa. Um assassinato cometido por agentes de um corpo policial português. Um assassinato cometido de modo lento, brutal, perverso, sádico. Um assassinato que os criminosos tentaram encobrir. Um assassinato de um homem presumivelmente louro, de olhos azuis, eslavo, caucasiano, porventura corpulento, quiçá altivo, quem sabe “violento”. Um assassinato que acabou encoberto por uma série de agentes não envolvidos na morte. Um assassinato que foi decerto interiorizado como o infeliz resultado de uma cadeia inadvertida de infortúnios, excessos e incidentes, que, em parte, se teriam ficado a dever ao próprio assassinado.

Um assassinato que não gerou nem indignação nem comoção nem manifestação. Um assassinato que não ocupou primeiras páginas nem abriu telejornais. Um assassinato que foi digerido pelos directores do corpo policial, sem escândalo nem sobressalto, sem infâmia nem remorso. Um assassinato que foi gerido, com tacticismo e oportunismo, pelos responsáveis políticos da tutela. Um assassinato que seguramente reforçou a muita fina e aguda consciência dos governantes de que, passada a tempestade (inexistente), “reformar é preciso”.

2. Nos inícios de Março, a polícia de fronteiras portuguesa, com absoluto domínio e controlo da situação, torturou e matou um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. Alguns colegas dos homicidas parecem ter encoberto o crime. As chefias policiais parecem ter aberto o inquérito com a fleuma burocrática de quem cumpre um iter da rotina. A tutela política, apesar da sua agora conhecida superior formação em direitos humanos e assuntos conexos, não valorizou a ocorrência nem dela tirou ilações. O primeiro-ministro, superlativo gestor das adversidades, ignorou o tema e seguiu em frente. O Presidente da República, que, para lá de toda a política, sempre se distingue pela empatia humana, permaneceu esfíngico.

Mas nós – e quando digo nós, digo eu e uma imensíssima parte de vós – também permanecemos inertes e indiferentes. A morte no aeroporto, às mãos de uns quantos agentes, foi mais uma notícia terrível, uma daquelas terríveis notícias, que se esvaem no frenesim das notícias da manhã seguinte. A comunicação social e as hoje “todo-poderosas” redes sociais, apesar de conhecerem o caso, não lhe deram relevo nem atenção. Ou, ao menos, não lhe deram o relevo e atenção que merecia. Nem páginas primeiras, nem aberturas de telejornais, nem alertas de noticiários. E a mesma estranha indiferença vale para partidos, deputados, organizações da sociedade civil, igrejas e até talvez para o Estado ucraniano.

3. Quase todos nós – não todos, felizmente – falhámos por omissão. Entre esses quase todos, há, porém, quem tenha mais responsabilidades, mesmo que não tenha as máximas e indeclináveis responsabilidades institucionais. Na política, na sociedade civil, na comunicação social, muitos podíamos ter feito mais. Como político, com acesso frequente à esfera comunicacional, sei que falhei. Como deputado europeu, particularmente atento às questões das fronteiras, dos seus controlos, das migrações, sinto muito ter falhado. Num caso desta natureza, com maiores ou menores hipóteses de sucesso, digo-o com pesar, eu podia ter feito mais, tinha obrigação de ter feito muito mais, não descortino nenhuma razão para não ter feito mais. A produção de algumas referências esparsas e casuísticas não basta para sossegar a consciência, cumprir o múnus político, perfazer o ímpeto cívico. Não basta. Muito pelo contrário: serve até para banalizar e vulgarizar os acontecimentos, normalizando-os, apoucando-lhes a escala e a gravidade. E, por isso, por essa omissão, por essa lacuna, por essa indiferença, peço desculpa à vítima, à família da vítima, à comunidade ucraniana em Portugal, aos eleitores, aos portugueses em geral. Peço desculpa.

Peço desculpa e agradeço sinceramente às jornalistas que não abandonaram o caso, que nunca desistiram, que nunca se conformaram com a indiferença e a inércia generalizadas. Esquecerei seguramente alguém, mas agradeço e julgo que, como sociedade e como povo, temos de agradecer à Fernanda Câncio, à Valentina Marcelino e à Joana Gorjão Henriques. Em circunstâncias difíceis e adversas, cumpriram a missão do jornalismo e devolveram-nos o sentido da decência, da justiça e da humanidade. Como, aliás, noutro registo, Zita Seabra, que não renunciou à intervenção cívica.

4. Se muitos falhámos e devemos assumi-lo, isso em nada aligeira a responsabilidade de quem tinha o dever institucional de cuidar desta matéria. E entre esses, não está, como tanta comunicação social tem erradamente sugerido, o Presidente da República. Podia e devia ter feito mais. Como ele, também eu e também muitos outros. Mas nem ele nem nós – esses outros – temos a responsabilidade efectiva que cabia à directora do SEF, ao seu subdirector, ao ministro e até ao primeiro-ministro. Criticar o Presidente, sem ter exigido a demissão da directora e – agora – a óbvia demissão do ministro é misturar tudo e branquear o que não é branqueável. Só há uma solução que se afigura decente e humana: a assunção da responsabilidade política pelo ministro. Conheço Eduardo Cabrita, sei do seu apego genuíno à causa dos direitos humanos e, por isso, acredito que saberá apresentar a sua demissão nos próximos dias. Não aliviará as culpas dos culpados, mas resgatará a dignidade de um país que se crê humanista.

Sim e Não

SIMAntónio Doce e José Brito. Um polícia que morre para salvar uma vítima de violência doméstica; um cidadão que arrisca a vida para salvar um afogado. Quem disse que o valor da fraternidade passou de moda?

NÃOGoverno e TAP. No verão, António Costa e Pedro Nuno Santos decidiram tudo a sós, criando mais um encargo financeiro gigante para o país. Agora dizem que divergem, mas quem paga somos todos nós.

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