Bruxelas quer ganhar poder de veto sobre avanço de empresas chinesas na Europa

Plano de “defesa comercial” prevê que a compra de empresas europeias por parte de companhias exteriores à União Europeia seja vista à lupa. A China é a principal potência na mira.

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É preciso manter a economia europeia aberta, mas com atenção às distorções, avisa Margrethe Vestager LUSA/KENZO TRIBOUILLARD / POOL

Com uma apresentação subtil, mas um alvo claramente definido, Bruxelas desvendou nesta quarta-feira um plano destinado a impedir que empresas estrangeiras impulsionadas por capitais públicos exteriores à União Europeia (UE) se tornem accionistas maioritárias de empresas europeias em sectores estratégicos.

A Comissão Europeia quer ganhar poder de veto se considerar que a operação distorce o mercado único porque — em contraste com as apertas regras de concorrência que se aplicam às subvenções dos Estados-membros europeus — o negócio só foi possível pelo facto de o dinheiro da compra ou da injecção financeira na empresa ter origem numa subvenção pública de um país terceiro.

É um plano desenhado para conter os avanços da China na economia europeia​. A pensar numa resposta à estratégia política de Pequim, sim, mas não apenas destinada à segunda economia mundial. Também a pensar na quantidade de aquisições que empresas públicas da Rússia ou dos Emirados Árabes Unidos fizeram na Europa desde a eclosão da crise financeira internacional.

Numa economia aberta ao mundo, onde cerca de 35% dos activos estão nas mãos de empresas estrangeiras, o que a Comissão Europeia quer pôr de pé são “novos instrumentos” de pendor proteccionista – de “defesa comercial” e regulatória — assentes em três pilares: um, que permita aos países identificar todas “as possíveis situações em que as subvenções estrangeiras podem causar distorções”; outro, com uma autoridade de controlo que pode, no limite, travar as operações de compra; e o último, centrado na protecção da contratação pública.

As propostas surgem num Livro Branco. Para já, este documento estará em consulta pública até 23 de Setembro e funcionará como uma base de trabalho a partir da qual Bruxelas irá fazer as suas propostas legislativas ao Parlamento Europeu e ao Conselho (governos europeus).

Evitar “vantagem indevida”

Segundo esta iniciativa, “as empresas que beneficiam de apoio financeiro de um governo de um país terceiro teriam de notificar à autoridade de controlo as aquisições de empresas da UE superiores a um determinado limiar”. O Livro Branco propõe que a Comissão seja essa autoridade de controlo. As operações de aquisição não poderiam ser concluídas antes de finalizado o processo de análise da Comissão. Se a autoridade de controlo considerar que a aquisição é facilitada pela subvenção estrangeira e distorce o mercado único, pode aceitar compromissos da parte notificante que corrijam efectivamente a distorção ou, em última instância, proibir a aquisição. No âmbito deste módulo, a Comissão poderia também aplicar o teste do interesse da UE [uma avaliação].”

O objectivo, explica a Comissão, passa por “garantir que as subvenções estrangeiras não conferem uma vantagem indevida aos seus beneficiários aquando da aquisição de (ou participação em) outras empresas, quer directamente através da associação de uma subvenção a uma determinada aquisição, ou indirectamente através do reforço, de facto, da capacidade financeira do adquirente.” Por outras palavras: que o capital público estrangeiro não é o factor determinante que permite o controlo efectivo — ser o beneficiário efectivo — de uma entidade.

Este pilar está articulado com o primeiro, porque Bruxelas quer criar uma autoridade de controlo — que poderá ser uma autoridade nacional em cada Estados-membro ou a própria Comissão — a quem cabe identificar em permanência as empresas europeias que beneficiam de uma subvenção estrangeira, para “identificar todas as possíveis situações em que as subvenções estrangeiras podem causar distorções no mercado único”.

“A confirmar-se a existência de uma subvenção estrangeira, a autoridade imporia então medidas para corrigir a provável distorção, tais como pagamentos compensatórios e medidas de índole estrutural ou comportamental. No entanto, poderia também considerar que a actividade ou o investimento subsidiados têm um impacto positivo que supera a distorção, o que a levaria a não prosseguir a investigação (‘teste do interesse da UE’)”, explica a Comissão Europeia.

Atenção da Alemanha

Ciente de que a Europa, perante uma nova crise, poderá estar perante o “risco real de as empresas vulneráveis poderem ser objecto de uma aquisição” exterior, a vice-presidente da Comissão, Margrethe Vestager, já tinha dado um sinal de que a Europa iria agir, chegando a abrir a porta a que os Estados-membros assumam posições numa empresa para impedir que um Estado terceiro o faça.

O plano está alinhado com as preocupações da Alemanha, que de Julho a Dezembro deste ano assume a presidência do Conselho da União Europeia (seguindo-se Portugal e a Eslovénia em 2021).

O Livro Branco tem a particularidade de não referir a China ou outros países em particular — é um plano desenhado em abstracto, a aplicar a qualquer país terceiro. Mas essa atenção à China — ou à Índia, à Rússia, aos Emirados Árabes Unidos ou investidores de jurisdições offshore — ficou patente quando, no ano passado, ao apresentar um documento sobre o aumento contínuo do capital estrangeiro em sectores estratégicos, a Comissão particularizou o caso de Pequim, ao destacar a “subida dos investimentos provenientes de economias emergentes, como a China” no fabrico de aeronaves e máquinas especializadas.

Não hostilizar, mas estar atento — foi esse o sinal que Margrethe Vestager quis passar esta quarta-feira ao explicar esta medida: “A economia europeia é aberta e está estreitamente ligada ao resto do mundo. Para que estas características continuem a representar vantagens, temos de estar atentos, pelo que precisamos de dispor dos instrumentos adequados para assegurar que as subvenções estrangeiras não causem distorções no nosso mercado, à semelhança do que fazemos com as subvenções nacionais”.

O sector petrolífero, a indústria farmacêutica, equipamento eléctrico e produtos electrónicos e ópticos são áreas de negócio onde a presença estrangeira já é “significativa”, lembrava então o executivo comunitário em Março de 2019.

Em Portugal, a presença de investidores chineses, de Macau ou de Hong Kong existe em sectores-chave e cresceu a partir da crise europeia, desde a energia à banca, passando pela comunicação social. A EDP tem como accionista principal a China Three Gorges; na REN está presente a State Grid of China; no BCP é accionista a Fosun, também presente na seguradora Fidelidade e na Luz Saúde (comprada ao antigo Grupo Espírito Santo); o banco de investimento Haitong (ex-Banco Espírito Santo Investimento) foi comprado por este grupo de Hong Kong; e a Global Media (dona da TSF, do Diário de Notícias, Jornal de Notícias ou O Jogo) tem como accionista de referência o grupo KNJ Global Holdings Limited, do empresário Kevin Ho, ligado a Macau.

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