Na nova rota da seda, todos os caminhos vão dar a Pequim

Xi Jinping vai apresentar a vários líderes mundiais o seu plano multimilionário para desenvolver infraestruturas em mais de 60 países da Ásia Central e de África. Para a China trata-se da afirmação definitiva na diplomacia mundial.

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A 15 de Fevereiro do ano passado, a estação ferroviária de Teerão recebia um gigantesco comboio de carga, com mais de trinta contentores. Era o final de uma viagem de 14 dias, em que foram percorridos mais de dez mil quilómetros entre a cidade de Yiwu, no leste da China, e a capital iraniana. A viagem histórica é, porém, apenas uma peça na ambiciosa estratégia do Governo chinês para revitalizar a célebre “rota da seda” – e revolucionar o comércio mundial.

Nos próximos dois dias, o Presidente, Xi Jinping, recebe em Pequim mais de vinte líderes mundiais, incluindo o Presidente russo, Vladimir Putin, o primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, ou o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, para explicar os seus planos. Não será fácil. Em traços muito gerais, os planos de Xi, enunciados pela primeira vez em público em 2013, resumem-se a estabelecer rotas comerciais que liguem a China, a Ásia Central, a Europa e ainda a África. Falamos de um espaço geográfico que inclui mais de 60 países, onde mora 60% da população mundial e cujas economias correspondem a um terço do PIB mundial.

Esta complexidade não impediu, porém, a propaganda chinesa de tentar transformar a estratégia conhecida como “One Belt, One Road” (OBOR) numa história para adormecer crianças. Literalmente. O jornal estatal China Daily publicou uma série de vídeos em que um jornalista norte-americano explica à filha de cinco anos os contornos desta política, utilizando os seus brinquedos. Não se espera que Xi utilize camelos de plástico quando se dirigir aos chefes de Estado que vai receber nos próximos dias, mas todos eles vão querer respostas concretas, a começar pela mais básica: Mas afinal o que é isto?

O nome dado à iniciativa não ajuda a esclarecimentos. A “cintura” refere-se às ligações terrestres entre a China e a Ásia Central, replicando a rota da seda que durante séculos foi o eixo que dominou o comércio mundial entre o Extremo Oriente e a Europa – foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, no final do século XV, que coincidiu com o seu declínio. A “estrada” trata-se da rota marítima através da qual a China pretende reforçar a sua ligação ao Sudeste Asiático e conectá-lo a África, onde a presença de empresas chinesas é já assinalável. Assim temos “uma cintura, uma estrada”.

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Para conseguir tudo isto, a China está disposta a gastar muito dinheiro para construir auto-estradas, caminhos-de-ferro, portos, oleodutos e gasodutos. Os países integrados na OBOR são quase todos subdesenvolvidos e o Banco Asiático para o Desenvolvimento estima que a região necessita mais de 26 biliões de dólares em investimentos até 2030 para manter as economias a crescer. Há quem compare a estratégia chinesa ao Plano Marshall – o programa de empréstimos norte-americanos para apoiar a reconstrução europeia no pós-II Guerra. A grande diferença é que Pequim planeia investir mais de dez vezes do total do Plano Marshall.

“A principal questão em torno da cintura e da estrada não é se faz sentido – faz – mas sim se um projecto maciço como este pode ser financiado facilmente”, diz ao South China Morning Post a economista chefe para a Ásia-Pacífico do banco Natixis, Alicia Garcia-Herrero.

Quem paga?

Desde que num discurso no Cazaquistão em 2013 – pouco depois de tomar posse como Presidente – em que Xi fez a primeira referência à iniciativa que praticamente todo o aparelho de Estado chinês se mobilizou em torno da nova rota da seda. Em 2014, foi criado o Fundo da Rota da Seda com um capital de 40 mil milhões de dólares canalizados exclusivamente para financiar projectos nos países-alvo. Juntam-se cem mil milhões de dólares disponibilizados pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas. Há ainda financiamento directo de 110 mil milhões de dólares pelo Banco de Desenvolvimento da China, detido pelo Estado, de acordo com dados obtidos pelo Financial Times. Ao todo, o Crédit Suisse calcula que sejam investidos qualquer coisa como 502 mil milhões de dólares em 62 países nos próximos cinco anos.

Do ponto de vista da China, tudo parece resumir-se a um dos muitos ensinamentos de Confúcio: “Aquele que deseja ter sucesso deve também ajudar os outros a ser bem-sucedidos.” Depois de uma década de crescimento acelerado, a economia chinesa atravessa um período de arrefecimento. Tornou-se urgente encontrar novos mercados para canalizar os produtos chineses, e o vasto continente que se estende a ocidente é um óbvio destino. No entanto, países como o Quirguizistão, Tajiquistão ou a Mongólia, têm graus de desenvolvimento muito baixos. A ideia é apoiar estes países para que, tal como na China nas últimas décadas, milhões abandonem a pobreza e se transformem em ávidos consumidores – de produtos chineses, de preferência.

“Há o risco real de que isto se torne numa fonte de financiamento mal atribuído e acabe por não contribuir para mais comércio ou maior colaboração económica, mas seja apenas gasto em projectos que nunca deveriam ter sido financiados”, alerta o presidente da consultora McKinsey para a Ásia, Kevin Sneader.

Numa altura em que o sector da construção passar por uma desaceleração na frente interna, a torrente de projectos nos países integrados na OBOR garante a várias empresas chinesas, especialmente construtoras e de engenharia, trabalho para os próximos anos.

Há um interesse diplomático subjacente a esta estratégia. “As maiores vantagens da China são financeiras – tem um enorme músculo económico – e na construção de infraestrutura”, diz ao Guardian Tom Miller, autor do livro China’s Asia Dream. O objectivo, continua Miller, é colocar “a China no centro da Ásia”. Um dos principais problemas é, por exemplo, a quantidade de dívida destes países que a China irá passar a deter através destes investimentos. “Como qualquer credor perguntaria, se se reestruturar uma dívida, quais são os termos deste processo?”, perguntava o investigador da Universidade da Columbia, Alexander Cooley, durante uma conferência no ano passado.

A eleição de Donald Trump nos EUA, com a promessa de “colocar a América primeiro” e investir menos nos interesses externos, foi encarada como uma oportunidade para que a estratégia chinesa fizesse ainda mais sentido. “Não é certo que a intenção [do OBOR] seja preencher o lugar de uma superpotência que está a abandonar o palco mundial”, escreve um analista no site do jornal Caixin, especializado em economia. “É que alguém tem de fazer esse trabalho. E a América não o está a fazer”, conclui.

Para o analista do Centro Carnegie de Pequim, Paul Haenle, “o mundo está a testemunhar a forma como a China é capaz e disposta para usar o sistema internacional, que os EUA ajudaram a criar, como uma plataforma para as suas próprias instituições e iniciativas”.

As dinâmicas políticas regionais podem, por outro lado, vir a ser um obstáculo a muitos destes projectos. No Sri Lanka, por exemplo, uma mudança de Governo e protestos populares foram suficientes para forçar a renegociação de um acordo para a exploração de um porto de águas profundas. O plano de um “corredor económico” entre a China e o Paquistão está a deixar a Índia desagradada, por passar parcialmente pela região de Caxemira, alvo de disputas territoriais.

Quatro anos depois do seu lançamento, permanecem muitas dúvidas quanto à escala e o alcance da nova rota da seda diz o Centro para Estudos Estratégicos Internacionais, excepto a conclusão de que reflecte uma visão do futuro que reina entre a liderança chinesa: “um futuro onde todas as estradas vão ter a Pequim.”

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