Vestager reforça poderes (e mantém controlo do dossier da Zona Franca da Madeira)

Tax lady”, como Trump já chamou à poderosa comissária da Concorrência, será um pilar central na nova Comissão Europeia.

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Vestager está incumbida de “garantir a todo o custo” a “soberania tecnológica” da Europa Reuters/Charles Platiau

Margrethe Vestager, a comissária europeia que se projectou dentro e fora da Europa à medida que foi ganhando lastro a sua luta contra as práticas comerciais de gigantes tecnológicas e contra os esquemas de planeamento fiscal de multinacionais, vai continuar em Bruxelas durante mais cinco anos. Agora, com autoridade reforçada dentro da Comissão Europeia.

A ex-primeira-ministra dinamarquesa será vice-presidente executiva de Ursula von der Leyen (presidente indigitada) e coordenará toda a estratégia da Europa para a era digital.

A poderosa pasta da Concorrência, que já liderava na Comissão Juncker desde Novembro de 2014, vai manter-se nas suas mãos, só que agora, em vez de ser apenas comissária, Vestager será vice-presidente, o que lhe garante um raio de acção alargado logo na linha de partida. E ainda mais pelo poder simbólico que foi ganhando ao longo dos últimos cinco anos, incomodando a Apple, a McDonald's, a Nike, a Amazon ou o Starbucks, ao ponto de o Presidente norte-americano, Donald Trump, a apelidar com desdém de tax lady” que “odeia” os Estados Unidos.

Os dossiers que passam pela Direcção-Geral da Concorrência continuarão a ser despachados no seu gabinete. E isso tem um significado particular para Portugal, porque é ali que corre um processo que visa directamente o Estado português e, por isso, a comissária terá uma palavra decisiva no desfecho da investigação europeia às isenções fiscais na Zona Franca da Madeira (ZFM).

Reforçar o escrutínio

Pode pensar-se que este é um dossier lateral na agenda da Comissão Europeia depois de Bruxelas multar o Google mais do que uma vez por causa de práticas monopolistas na publicidade e nas suas ferramentas, depois de uma “guerra” com a Apple para exigir que a Irlanda recupere 13 mil milhões de euros em impostos, depois de investigações à Fiat e à Amazon no Luxemburgo por causa de esquemas de planeamento fiscal, ao Starbucks na Holanda, à Nike na Holanda, ao Ikea no triângulo Holanda-Luxemburgo-Liechtenstein ou a 35 multinacionais na Bélgica.

Pode pensar-se que o dossier da Zona Franca da Madeira é lateral porque não tem directamente a ver com a tributação do digital, nem com as práticas anticoncorrênciais das tecnológicas. Mas só à superfície não se encontram paralelos.

É que a investigação a Portugal encaixa que nem uma luva num dos principais pontos da agenda europeia: visar, passo a passo, alguns Estados-membros para verificar se os governos estão verdadeiramente a aplicar mecanismos de controlo internos para garantir que não há empresas a beneficiar de reduções de impostos que põem em causa a concorrência no mercado comum.

E o que está a ser investigado em relação a Portugal tem tudo a ver com isso, pois Bruxelas suspeita que o Estado português, ao arrepio de decisões de 2007 e 2013, atribuiu ao longo de anos benefícios de IRC a empresas sem cuidar se os postos de trabalho eram criados e mantidos na Madeira, e sem cuidar se os lucros das empresas tinham origem em actividades desenvolvidas na região.

A investigação formal está a decorrer desde Julho do ano passado, para investigar “se as autoridades portuguesas aplicaram e acompanharam devidamente” o regime de que vigorou entre 2007 e 2014 (regime III). Os controlos preliminares de Bruxelas sugerem que “algumas empresas podem ter beneficiado de importantes reduções aos seus impostos sem terem efectuado um contributo efectivo para o desenvolvimento da região através da criação de empregos reais na Madeira”. Para já, há uma decisão preliminar a considerar que o regime foi aplicado de uma forma que constitui um “auxílio ilegal”.

Será preciso esperar pela decisão definitiva para se conhecer o desfecho e as consequências exactas. Independentemente do sentido da decisão e independentemente do momento em que for conhecida — ainda na Comissão Juncker ou na Comissão Leyen a partir de 1 de Novembro —, a decisão passará sempre pelo gabinete de Vestager.

Procurar consensos

Na nova equipa de von der Leyen, Vestager foi incumbida de trabalhar na tributação do digital para “encontrar um consenso a nível internacional até ao final de 2020 ou propor um imposto europeu justo”, refere a carta de missão dirigida por von der Leyen a Vestager. A criação do imposto “GAFA” (de Google, Apple, Facebook, Amazon) para visar as receitas das actividades digitais que hoje escapam à tributação na Europa (como a venda de dados e conteúdos gerados pelos utilizadores) já esteve em cima da mesa, mas a União Europeia ficou dividida porque nem todos os governos estão de acordo com a medida e a iniciativa acabou por não avançar para já.

Relançar o assunto, depois de a França avançar unilateralmente com esse imposto, será certamente um assunto que estará no horizonte.

O poder simbólico que Margrethe Vestager foi ganhando como comissária é grande ao ponto de Bloomberg a descrever como “a pior inimiga” de Silicon Valley. Apesar da relutância inicial do Governo dinamarquês em a indicar como comissária, a partir do momento em que a política liberal se colocou na corrida à presidência da Comissão e conseguiu que fosse escolhida por Copenhaga, não precisou de pedir licença para continuar. Vestager não escondeu que o trabalho no pelouro da Concorrência ainda não estava terminado.

A somar a isso, tem um caderno de encargos deixado por von der Leyen que lhe permite fazer a ponte com o que hoje já faz: tirar o “máximo partido da inteligência artificial e dos grandes volumes de dados”, melhorar a cibersegurança e “garantir a todo o custo” a “soberania tecnológica”.

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