Os mais novos estão cada vez mais ligados aos dispositivos: quais os riscos e como gerir?

O período de confinamento veio aumentar o tempo que as crianças e jovens passam à luz dos ecrãs. O PÚBLICO falou com especialistas para ajudar as famílias a lidar com os desafios que surgem diariamente.

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Os especialistas concordam que as crianças são expostas cada vez mais novas às tecnologias PAULO PIMENTA

Se a presença de smartphonestablets ou computadores se tornou quase universal na vida dos mais jovens, o período de confinamento só veio acentuar essa tendência. Entre a utilização dos dispositivos electrónicos para o estudo, para socializar com os amigos e família ou para entretenimento, “é perfeitamente normal que, nesta altura, as crianças e jovens passem mais tempo ligados aos aparelhos”, admite Sofia Ramalho, psicóloga especialista em educação.

A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) e mãe de três filhos de quatro, 14 e 17 anos revela que, se antes já não era fácil determinar um número-padrão de horas aconselháveis para essa utilização, “agora é quase impossível especificar porque todos os jovens têm necessidades diferentes”. “Estamos numa fase em que não podemos aplicar aquilo que se aplicaria numa situação normal, mas o tempo longe dos ecrãs continua a ser muito importante”, sublinha.

Enquanto muitos pais foram apresentados repentinamente ao conceito de a escola chegar via televisão e a utilização dos dispositivos ser agora uma obrigação escolar, há outros para quem esse conceito já é uma realidade há anos.

Os dispositivos enquanto ferramentas de estudo

No Colégio Atlântico, no Seixal, há mais de cinco anos que cerca de 700 alunos do 5.º ao 12.º ano de escolaridade trocaram os livros físicos por versões virtuais através de tablets. Para esses estudantes, a transição para vídeo-aulas em período de quarentena foi mais suave, pois já estão habituados a utilizar os aparelhos para um fim pedagógico. “Usar tablets no dia-a-dia já expandia as salas de aula para além daquelas quatro paredes”, conta ao PÚBLICO Vítor Pereira. O professor de 33 anos, membro da direcção da escola, explica que trocar o papel pelo digital fez com que os alunos “pudessem aceder directamente a um conjunto de materiais e recursos muito mais extensos” que eles “têm forçosamente de saber gerir”. Obrigou, ao mesmo tempo, a que fosse estimulada “a procura de fontes de informação credível” e facilitou o contacto directo com os professores. Para o docente de Economia e Matemática, “a escola tem de estar preparada para lidar com o mudar dos tempos” e, por isso, espera que “daqui a dez ou 20 anos a escola pública já tenha capacidade para utilizar este tipo de recursos”.

Numa “altura diferente”, a Internet encurta as distâncias

Por enquanto, a maioria dos alunos mantém-se com os livros em papel para estudar e com os dispositivos para socializar. Esta segunda componente é de importância redobrada nos tempos que correm, sublinha a psicóloga Sofia Ramalho. “Na ausência de contactos presenciais com os colegas, sobretudo na fase da adolescência, é aconselhável que utilizem as videochamadas para socializar com os colegas. Isto para acalmar também a ansiedade provocada pela falta de contacto social”, sugere a especialista e mãe de 46 anos. A sugestão estende-se também às crianças até aos três anos de idade, embora a Organização Mundial de Saúde recomende que estas não sejam expostas aos ecrãs. “É uma altura diferente. Algumas têm sessões de pré-escolar e também lhes deve ser permitido o contacto com os avós por videochamada, por exemplo”, mas sempre com supervisão, enfatiza a psicóloga.

Problema já é antigo

A relação dos mais novos com os dispositivos pode ter uma importância acrescida nesta altura de confinamento, mas o que preocupa o pedagogo Renato Paiva, de 39 anos, “não é este momento específico em que pode haver uma utilização um pouco mais intensiva”. O técnico com quase 20 anos de experiência a trabalhar com crianças e pai de uma menina de oito anos revela-se mais apreensivo com o facto de “essa utilização excessiva já perdurar há muito tempo e ser agora quase a regra que se sobrepõe ao contacto social, ao contacto com outras experiências ao ar livre e com outro tipo de objectos que não apenas de interactividade digital”.

Um dos exemplos dessa utilização excessiva materializa-se quando “muitos pais vêem na tecnologia a única forma de manterem os filhos sentados e sossegados para comer”. Esse tipo de comportamentos, segundo Renato Paiva, habitua os mais novos a “um sentimento de recompensa e de liberdade” e “alimentam apenas aquilo que são as suas vontades”, o que leva a que no futuro “seja muito mais difícil eles saberem fazer uma gestão da frustração”. O profissional da educação lembra que na fase da adolescência os pais têm maior dificuldade em fazer a contenção “de algo que deveria ter sido feito de forma gradual” e não mais tarde à força. “Como é que se proíbe um adolescente de usar o telemóvel à mesa quando desde pequeno foi habituado a ver desenhos animados ao almoço?”, questiona em sentido de alerta.

Os problemas que advêm do uso indevido das tecnologias atingem não só a gestão de emoções, mas também a sua demonstração perante os outros, lembra a psicóloga Sofia Ramalho. “É muito mais fácil aos jovens dizerem como se sentem quando ninguém está a ver. A utilização da tecnologia como meio faz com que percamos a nossa capacidade de expressar emoções”, revela a especialista em educação. Se, por um lado, não nos conseguimos exprimir a não ser de forma parada e pensando por trás de emojis, sem comunicação presencial, acabamos por “perder a capacidade de interpretar as emoções dos outros” que são demonstradas através “da comunicação não-verbal”.

“A falta de treino destas competências vai gerar problemas de comunicação no futuro. Desde um maior número de conflitos, menos assertividade, menor capacidade na resolução de problemas, ou seja, são várias as questões que se vão estender ao futuro enquanto adultos e em situações laborais”, esclarece.

Já a curto prazo, são cada vez mais comuns as situações de isolamento “quando os jovens se resguardam nas tecnologias para não enfrentar a relação com o outro”, revela a psicóloga, sendo que daí “podem surgir situações clínicas de depressão”.

Como devem os pais fazer a gestão entre a necessidade do uso dos dispositivos e os riscos associados?

Se balizar em termos temporais parece não gerar consenso, os especialistas concordam que proibir não é a melhor solução, uma vez que estes dispositivos são apenas ferramentas e é a forma como os utilizamos que determina os efeitos positivos ou negativos.

“Ter um telemóvel pessoal aos dez anos parece-me um exagero”, classifica Sofia Ramalho, mas a psicóloga admite que a decisão “varia de criança para criança” e isso não significa que não possam utilizar os dispositivos dos pais mediante supervisão.

“Eles mais cedo ou mais tarde vão contactar sozinhos com os dispositivos. Aqui a questão não é a proibição, é a regra. Tem de reinar o bom senso e seguir a máxima de que tudo o que é em excesso faz mal”, clarifica Renato Paiva. O pedagogo considera que “o importante é que haja uma orientação e uma postura vigilante” por parte dos pais.

Uma das “boas práticas” que pode ser adoptada pelas famílias é o diálogo constante. O ideal, para a vice-presidente da OPP, seria que “as famílias com crianças até aos 13 ou 14 anos se sentassem para conversar uma vez por semana. Seria uma oportunidade para falar sobre o que têm publicado, o que têm pesquisado, o que têm visto”. A especialista reitera que os pais não podem assumir atitudes autoritárias como “dá-me o telemóvel”. “É importante que as crianças percebam que os pais respeitam a sua privacidade e explicar-lhes o porquê da preocupação, explicando-lhes os riscos como o cyberbullying, o uso inapropriado de imagens por parte de predadores sexuais, etc.”, descreve.

Quanto às redes sociais, embora algumas como a plataforma de partilha de vídeos Tik Tok, popular entre as camadas mais jovens, permitam a utilização por parte de crianças a partir dos 13 anos, os cuidados devem ser redobrados. Até por volta dos 15 anos, os conteúdos e as “amizades virtuais” devem ser monitorizados de perto por parte dos pais, de forma a criar bases e bom senso quanto à sua utilização, refere a psicóloga.

O maior risco para os pais é o gap de conhecimento

Apesar dos maiores esforços que possam ser feitos pelos pais, é fundamental que estes entendam que “os filhos dominam muito melhor a tecnologia do que os pais alguma vez irão dominar”, afirma Bruno Castro, de 44 anos, especialista em cibersegurança.

Para o partner da VisionWare, empresa portuguesa de consultoria informática especializada em cibersegurança, o gap de conhecimento entre os nativos e os utilizadores digitais menos experientes representa o maior risco para os pais nesta questão. O profissional, e pai de três filhos entre os dois e os seis anos, considera que a situação de confinamento proporcionada pela pandemia “vai servir como um catalisador”, uma vez que os mais novos, ao passar mais tempo nos dispositivos, “vão acelerar ainda mais os conhecimentos que já tinham”.

Mesmo que os pais dominem algumas ferramentas que permitam uma maior gestão do que os filhos vêem e fazem online, isso pode nunca ser totalmente eficaz.

“Estou no mundo da cibersegurança há muitos anos e sei que isso de cadeados 100% seguros não existe”, reitera Bruno Castro. “Nós temos de partir do pressuposto que ferramentas como aplicações de controlo parental, definições de privacidade, antivírus, etc., apesar de úteis e recomendadas, apenas minimizam os riscos, não os eliminam. Servem para apoiar e colmatar as boas práticas que os mais novos ainda não sabem, mas não devem ser pensadas como uma vacina que se toma e está feito”, explica o especialista em cibersegurança.

Para além das vulnerabilidades em termos técnicos, coloca-se a hipótese de a criança ter conhecimento de causa para contornar essas ferramentas. “Há 30 mil formas de o filho, que domina mais as tecnologias do que os próprios pais, conseguir contornar essas ferramentas”, relembra o profissional, que faz parte do grupo de auditores de segurança credenciado pelo Gabinete Nacional de Segurança. “É um pouco como quando os nossos pais fechavam o carro às sete chaves pensando que estava seguro, mas nós encontrávamos formas de o ir lá tirar”, compara.

O profissional salienta que “a sensação de segurança que os pais têm quando estão no conforto do seu lar, sabendo que o filho está no quarto ao lado” é falsa, e considera que “as crianças também têm de perceber isso rapidamente”.

Quanto ao proibicionismo como solução, Bruno Castro concorda que não funciona. “O mundo mudou e os meios digitais estão na nossa sociedade para sempre. Apesar de os pais acharem que protegem os filhos temporariamente, estão a expô-los muito mais no futuro”, explica.

As implicações no sono dos mais novos

Se os perigos das tecnologias são capazes de tirar o sono aos pais, também os filhos podem ter a saúde do seu sono afectada pela mera utilização dos dispositivos.

“A própria luz emitida pelos ecrãs inibe a produção de melatonina e afecta, obviamente, o descanso dos mais novos”, avisa Filipa Sommerfeldt Fernandes, especialista em sono infantil.

A terapeuta de 38 anos e mãe de dois filhos de quatro e oito anos relembra que as consequências nefastas do excesso de tempo passado a utilizar estes aparelhos já deviam ser uma preocupação desde há muito, mas “nesta altura é ainda mais importante”, já que as próprias circunstâncias de confinamento afectam a qualidade de sono de todos, incluindo crianças.

Contudo, não é só a luz dos ecrãs que prejudica o sono. A própria forma como utilizamos os dispositivos, sobretudo no caso dos mais novos, introduz outro problema quanto à activação cerebral. “A maior parte dos miúdos não está a ver séries ou filmes, conteúdos estáticos, antes de ir dormir”, começa por explicar. “Normalmente o que fazem é passar conteúdos muito rapidamente. Essa actividade representa exactamente o oposto do que devia acontecer num momento em que queremos é que o cérebro comece a acalmar, a desligar, de forma a entrar num mood de sono”, alerta a terapeuta e autora.

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