Berlim celebra a queda do muro atenta à intolerância

Houve concertos para todos os gostos, debates, dezenas de histórias partilhadas. Mas a atmosfera festiva dos 30 anos foi marcada por um tom de reflexão: “O racismo, o ódio e o anti-semitismo têm de ser contrariados”, disse Merkel.

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Fogos de artifício na Porta de Bradenburgo, em Berlim epa/CLEMENS BILAN
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Há 30 anos, Falk passava para Berlim Ocidental pela primeira vez. Hoje, com a mulher, Julia, está aqui a comemorar e a relembrar o dia “em que parecia que tudo era possível”. Ele é da Alemanha de Leste, ela da Ocidental, mas antes que haja mais perguntas o casal diz logo que “essa é uma história que não tem nada a ver com a queda do muro”.

Falk era operador de câmara na estação de televisão da então República Democrática Alemã (RDA) e por isso já pressentia uma mudança. Julia, na altura estudante em Mainz, foi totalmente surpreendida pela queda do muro, que não imaginava que pudesse alguma vez acontecer. Hoje os dois estão no meio de uma enorme multidão na porta de Brandeburgo a celebrar.

O ponto de viragem tinha sido a grande manifestação, não autorizada, de 9 de Novembro na Alexanderplatz, diz Falk. “Também lá estive, e foi impressionante.” Mas a grande experiência de que não se esquecerá nunca foi passar para Berlim ocidental na noite de dia 9. “Foi sentir uma liberdade... Não consigo explicar o que senti”, desculpa-se, emocionado. Julia, pelo seu lado, viu pela televisão e teve uma enorme pena de não estar em Berlim. “Mas era tão longe...”

A situação profissional de Falk sofreu com a reunificação, passou a ser trabalhador independente, e “ficou tudo muito mais inseguro”, afirma. “Mas estamos todos muito melhor agora”, garante. “Para muitos parece que não é suficiente. As pessoas são muito esquecidas.”

A Porta de Brandeburgo não é o melhor lugar para conversar. A multidão é enorme, por todo o lado há gente a chegar, a polícia avisa a dada altura que uma das vias de acesso “está totalmente cheia” e sugere caminhos alternativos. Há pessoas de todas as idades, grupos de adolescentes, famílias com crianças a pé, ao colo ou em carrinhos, casais mais velhos amparando-se entre si.

Os concertos – desde a orquestra dirigida por Daniel Barenboim ao veterano do tecno WestBam – marcaram o final de uma semana cheia de exposições, debates, e partilhas – um jornal de Berlim fez uma redacção ambulante numa linha de metro para ouvir histórias de habitantes da cidade.

Sem pompa, com reflexão

As celebrações deste aniversário foram descritas como sendo “sem pompa, com reflexão” – o responsável pela Cultura da cidade-estado de Berlim, Klaus Lederer (Die Linke/A Esquerda) salientou que o optimismo era muito menor do que em comemorações anteriores – com uma maior atenção dada a quem, na Alemanha de Leste, perdeu com a mudança e também com os recentes resultados eleitorais do partido de direita radical AfD (Alternativa para a Alemanha), que ficou em segundo lugar em três eleições em estados federados do Leste.

O dia começou com esta reflexão, com discursos alertando para o perigo que espreita: do populismo, do racismo, da intolerância.

“Os valores da liberdade, igualdade, Estado de direito, estão tudo menos garantidos”, disse a chanceler, Angela Merkel, num discurso na Capela da Reconciliação, que faz parte do memorial da Bernauer Strasse, uma rua que foi dividida pelo muro. “Temos de os viver e defender todos os dias,” sublinhou.

Merkel chamou a atenção para outro 9 de Novembro na Alemanha: a Noite de Cristal, o ataque contra judeus que precedeu a Shoah. Nesta data assinalam-se “o momento mais terrível e o mais maravilhoso da nossa história”, disse, o que mostra “que o racismo, o ódio e o anti-semitismo têm de ser contrariados”. Merkel sublinhou que antes de o muro ter caído, ninguém imaginaria que ele iria cair, e que foram acções de uma minoria que permitiu que acontecesse. E realçou o poder da acção individual: “As ondas sozinhas podem parecer não fazer nada, mas não é possível resistir à força da maré.”

Antes, também no pedaço de muro da Bernauer Strasse – o que está mais preservado com todo o sistema associado: torre de vigia, faixa da terra de ninguém, um segundo muro – os chefes de Estado da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, e os dos países de Visegrado, Polónia, Andrzej Duda, Hungria, János Áder, República Checa, Milos Zeman, e Eslováquia, Zuzana Caputova, deixaram rosas nas fissuras do muro.

“Sem a coragem, a vontade de liberdade dos polacos e dos húngaros, dos checos e dos eslovacos, as revoluções pacíficas na Europa de Leste e a reunificação da Alemanha não teriam sido possíveis”, disse Steinmeier.

O responsável pelo memorial, Axel Klausmeier, juntou um agradecimento ao antigo líder soviético, Mikhail Gorbatchov, cuja política de abertura a partir de Moscovo tornou todos os desenvolvimentos possíveis.

DIY, tradição em Berlim

Mas sendo Berlim como é, não podiam faltar iniciativas não oficiais. O realizador Torsten Löhn, de 50 anos, preparava uma delas: não havia nenhuma celebração oficial na ponte Bornholmer, “onde estava meia Berlim” na noite da queda do muro. Ele resolveu fazê-la.

Löhn está à frente de uma organização para protecção de um conjunto de pequenos jardins que existem nesta zona, junto ao antigo muro, do lado Leste (“tinham cadeados a fechá-los por serem tão perto”, não fosse alguém usá-los para passar para o lado ocidental). Andou nos últimos dias a filmar os berlinenses de Leste do conjunto de jardins, e o plano era projectar as imagens e as histórias das pessoas na ponte.

Ele próprio também tem a sua história Leste/Oeste. “Costumo dizer que sou mestiço”, alguém que pertence às duas Alemanhas, conta. Os pais, da ex-RDA, foram para a Alemanha Ocidental em 1961, semanas antes de o muro ser construído quase de um dia para outro. E agora está numa espécie de aliança Leste/Oeste: na associação que cuida dos jardins, é o vice-presidente, e o presidente é um antigo chefe da polícia de Leste (“o mais diferente do que poderias pensar de alguém que foi chefe da polícia de Leste”, diz).

No dia da queda do muro, Torsten Löhn não estava pendurado na ponte Bornholmer, nem na Porta de Brandeburgo. Fez o caminho contrário à multidão, que entrava em Berlim ocidental sem conhecer nada – os mapas orientais que havia na altura, conta, tinham a parte de Berlim ocidental em branco, “era terra incógnita”.

Isto porque a companhia de teatro de que fazia parte foi em peso acompanhar uma actriz que dois anos antes fugira “de um modo qualquer maluco, já não me lembro como” da ex-RDA. “Nesses casos a família que ficava para trás sofria [vigilância ou represálias], e ela queria muito vê-los.” Lembra-se de entrar numa cidade fantasma, porque estava toda a gente em Berlim Ocidental. “A dada altura tive um medo repentino de ficar ali preso e de não poder voltar ao meu mundo.”

Hoje, só se lhe perguntarem se nota o seu lado “de Leste” é que, depois de pensar, diz que se sente mais à vontade entre pessoas do Leste. Mas no projecto dos jardins sabe que é visto como sendo “do ocidente” e também tem consciência de que isso traz à tona, às vezes, irritações aos mais velhos alemães de Leste.

Para ele, no entanto, isso não é o mais importante. “Há uma série de tensões actualmente. Não são entre Leste e Ocidente, são, sei lá, entre os miúdos filhos de imigrantes que estudam nas escolas ali tão perto, e nunca saíram do bairro, e os outros.” Ou seja, em conclusão para Torsten Löhn, “há vários ‘nós e os outros’ neste momento.”

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