O processo do FMI e a “narrativa de proximidade” da imprensa

Basta ler as peças de alguns jornalistas para perceber que a “sua” fonte é, muitas vezes, o próprio primeiro-ministro.

1. Os ministros das Finanças da UE escolheram como candidata europeia à liderança do FMI Kristalina Georgieva. Uma escolha que era, para qualquer observador atento, a mais expectável. A única surpresa foi a resiliência de Dijsselbloem, que apresentava muito mais fragilidades.

2. Quem todavia olhe para a informação e opinião veiculadas pela nossa imprensa, enfaticamente atrelada às pretensas altas hipóteses de Centeno, não pode deixar de ficar perplexo. A imprensa lusa parece demasiado ligada à narrativa e ao filtro informativo da residência oficial de S. Bento, designadamente em matéria europeia. Eis algo que já se tinha visto aquando do processo de escolha dos postos-chave da UE. No domingo 30 de Junho, toda a imprensa dava como certo o nome de Timmermans para a presidência da Comissão. Pois bem, bastava ter diversificado e contrastado as fontes para se perceber que essa indicação dificilmente poderia vingar. Mesmo depois do chumbo de Timmermans, a “omnipresença narrativa” da residência de S. Bento transpareceu, mais uma vez, no modo como se voltou à carga com uma “grave divisão” no PPE ou com um suposto ascendente de Viktor Órban sobre os chefes de executivo do PPE. Tudo mera ficção, como qualquer pessoa mais envolvida pode atestar.

Punhamos as coisas no lugar próprio: ninguém nega o apego de António Costa às questões europeias e o valor das informações e apreciações que faz veicular. Mas elas não podem constituir fonte única ou primacial. Basta ler ou ver com atenção as peças ou os comentários de alguns jornalistas – que são recorrentemente os mesmos – para perceber que a “sua” fonte é o círculo mais íntimo e, muitas vezes, o próprio primeiro-ministro. Insisto: só má vontade poderia pôr em causa a valia das fontes da residência oficial. O problema não está aí; o problema está na adesão acrítica às informações e, mais do que isso, às narrativas que dali provêm. Há mais vida europeia para lá dos jardins de S. Bento ou do bunker da Gomes Teixeira.

3. Façamos um exercício, voltando ao processo da escolha do candidato ao FMI. Considerando os cinco candidatos em liça, parecia óbvio que nem Calviño nem Centeno teriam chances sérias. A espanhola Calviño padecia de uma fragilidade fatal: a Espanha ficou com o Alto Representante na recente distribuição dos postos europeus. Não seria crível que obtivesse agora outro lugar de relevo. No caso de Centeno, jogavam contra ele os postos que Portugal ocupou e ocupa. A propósito da indicação de Vitorino para o topo da Organização Internacional para as Migrações, Merkel já lembrara a vários altos dignitários que Portugal não poderia queixar-se de falta de representação nos mais altos cargos globais. A presidência da Comissão entre 2004 e 2014 e, logo a seguir, a Secretaria-Geral da ONU. Ainda assim, e mesmo contra esta advertência, conseguiu-se pôr Vitorino nas Migrações e Centeno no Eurogrupo. Não era razoável pensar que Centeno pudesse agora migrar do Eurogrupo para o FMI. Também e ainda por duas razões adicionais. Tendo a Espanha um importante posto europeu, a quota ibérica (ou até do Sul da Europa) está preenchida. Não por acaso, Centeno e Calviño foram os dois primeiros candidatos a desistir da corrida. E, de resto, Centeno fez mal em ter-se posicionado. Enquanto presidente do Eurogrupo, se não se tivesse arvorado em candidato, poderia ter desempenhado um papel arbitral que lhe traria (e ao país) dividendos futuros. Tudo isto são factos e conjecturas a que imprensa portuguesa poderia ter acedido. Mas preferiu embarcar nas teses de S. Bento, que, mesmo que não tivesse interesse numa fuga de Centeno, sempre poderia “lucrar” com o “prestígio” de o fazer passar por um “papabile”.

4. Dos restantes três candidatos e, apesar do apoio alemão, Dijsselbloem parecia o candidato em pior posição. Dijsselbloem tinha contra ele a rejeição categórica do Sul da Europa por causa do desempenho no Eurogrupo. E também o facto de ser holandês, provindo da Europa Ocidental, mais do que representada no novo equilíbrio de poder da UE. É certo que contava com o suporte alemão e depois, pasme-se!, com o apoio espanhol – que ilustra bem o quanto Sánchez está longe da estratégia europeia de Costa. Por aqui, quase todos omitiram que se tratava de um candidato socialista, colega de governo de Timmermans. Sim, o Timmermans, por cá tão incensado pela narrativa de proximidade de S. Bento, foi ministro dos Negócios Estrangeiros holandês quando Dijsselbloem era ministro das Finanças e chefe do Eurogrupo. No Conselho de Assuntos Gerais, Timmermans foi sempre solidário com a linha dura de austeridade do seu colega de partido; mas agora, vá lá saber-se porquê, isso foi esquecido e ele foi reabilitado.

Neste particular, Olli Rehn parecia mais bem colocado. Proveniente do bloco nórdico, que não tem quase representação no topo da UE (conta agora com a dinamarquesa Vestager), e de um país neutral entre o Ocidente e o Leste – a Finlândia. Bem visto pela Alemanha e não hostilizado pela Rússia (que, junto dos emergentes, pode ter uma palavra), podia ser uma solução de consenso. Mas a Alemanha não abdicou de um “ortodoxo” e jogou em Dijsselbloem e contra Georgieva (que, ironicamente, havia sido a “sua” candidata a secretária-geral da ONU). Georgieva, por sua vez, tinha tudo para ganhar e só surpreendeu por ter gerado tão grande resistência. Para além de ser mulher e ter uma sólida carreira europeia e internacional, vem do Leste. E o Leste tem sido o grande perdedor deste novo ciclo de governação institucional. Jogavam contra ela dois factores: não provir de um país da zona euro e o limite de idade. Este último pode ainda reverter todo o processo. E teve talvez um outro adversário, que sendo decisivo para a investir, há-de ter mobilizado muitas resistências: o apoio férreo de Macron. Eis o que pode explicar o desagrado da Alemanha.

SIM e NÃO

SIM. Mário Esteves de Oliveira: foi um dos maiores administrativistas do nosso tempo. A sua alegria de viver, a inteligência e a cultura jurídica, teórica e prática, fizeram dele uma lenda da advocacia e da parecerística. 

NÃO. Mário Centeno. A uma já clara subida da carga fiscal soma-se o enorme volume de dívidas fiscais incobráveis. Incompetência da administração, mas também obsolescência dos tribunais fiscais. 

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