Trump condenado na Câmara dos Representantes por “comentários racistas”

É a primeira vez, desde 1912, que uma das câmaras do Congresso norte-americano aprova a condenação de um Presidente em exercício. Mas o Partido Republicano manteve-se unido contra o Partido Democrata no debate de um dos temas mais sensíveis no país.

Donald Trump
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Donald Trump Reuters/Leah Millis
As congressistas do Partido Democrata Rashida Tlaib, Ilhan Omar, Alexandria Ocasio-Cortez e Ayanna Pressley
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As congressistas do Partido Democrata Rashida Tlaib, Ilhan Omar, Alexandria Ocasio-Cortez e Ayanna Pressley LUSA/JIM LO SCALZO
Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes
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Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes LUSA/ERIK S. LESSER

Os congressistas do Partido Democrata na Câmara dos Representantes dos EUA aprovaram uma moção de censura contra “os comentários racistas do Presidente Trump dirigidos a membros do Congresso”, a primeira condenação de um Presidente em exercício nos últimos 107 anos. No final, apenas quatro republicanos e um independente votaram ao lado dos 235 democratas, e um deles foi William Hurd, o único congressista negro eleito pelo Partido Republicano.

A moção aprovada na terça-feira não tem consequências práticas para a forma como Trump exerce o cargo, mas é um forte sinal de como os dois grandes partidos norte-americanos estão cada vez mais afastados um do outro.

O voto de condenação foi uma resposta às declarações do Presidente Trump no Twitter, no domingo, quando disse que algumas mulheres congressistas da ala mais à esquerda do Partido Democrata deviam “voltar para onde vieram”.

Trump não referiu nomes, mas sabe-se que falava em particular de Alexandria Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar, conhecidas pelas suas posições progressistas e por defenderem a destituição imediata do Presidente norte-americano.

Ao dizer que as quatro congressistas – conhecidas informalmente como The Squad (o pelotão) – deviam “voltar para o lugar de onde vieram”, Trump foi acusado de racismo, já que todas elas são mulheres de cor, duas são muçulmanas e apenas uma não nasceu nos EUA. Omar, de 37 anos, chegou ao país com dez anos, como refugiada da guerra na Somália.

Republicanos com Trump

Apesar de o Partido Democrata ter conseguido aprovar a sua moção de censura contra os tweets do Presidente (com 240 votos a favor e 187 contra), ficou claro que Trump tem hoje o apoio da esmagadora maioria do Partido Republicano, mesmo quando o debate é sobre questões tão sensíveis nos EUA como o racismo.

É uma grande diferença em relação ao que aconteceu na campanha para as eleições de 2016, quando várias figuras de topo do partido condenaram a postura do candidato e tentaram mesmo travar a sua nomeação oficial.

Dois anos depois, o bom estado da economia e os sucessos do Presidente Trump (redução dos impostos, nomeação de juízes conservadores para o Supremo Tribunal e taxa de aprovação a subir entre o eleitorado do Partido Republicano) são pagos com a ausência de uma oposição contundente por parte de alguns dos antigos rivais internos.

E o Presidente não perdeu a oportunidade para sublinhar essa nova realidade, na sua primeira reacção à votação na Câmara dos Representantes.

“É fantástico ver um Partido Republicano tão unido na votação sobre as declarações que eu fiz sobre quatro congressistas do Partido Democrata”, disse Trump, aproveitando também para passar a mensagem aos eleitores de que a liderança dos democratas está nas mãos da ala progressista (os “socialistas”). “Se quiserem ver declarações, olhem para as coisas horríveis que elas disseram sobre o nosso país, sobre Israel, e muito mais. Elas são agora as principais congressistas do Partido Democrata na Câmara dos Representantes, que se casou com este ódio e com esta amargura.”

Divisões democratas

A votação em massa dos congressistas republicanos contra a condenação dos tweets de domingo de Trump, e o silêncio de muitas figuras de primeira grandeza do Partido Republicano sobre o assunto, indicam que o Partido Democrata pode ter mais problemas para travar a reeleição do Presidente Trump do que se antecipava há dois anos.

Para além da união no Partido Republicano à volta de Trump, o Partido Democrata atravessa um momento interno conturbado, com a luta entre os centristas e os progressistas a atrasar um consenso sobre que candidato é o mais indicado para vencer em 2020.

A ala centrista, representada pela líder da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, prefere um candidato mais moderado, como Joe Biden, para recuperar as perdas em estados como a Pensilvânia, o Michigan e o Wisconsin, onde muitos eleitores tradicionais do Partido Democrata votaram em Donald Trump em 2016 – entre outras coisas, por se apresentar como um candidato anti-globalização e defensor dos trabalhadores norte-americanos, e por se opor ao discurso mais liberal e progressista das duas costas do país.

Na ala mais à esquerda – onde estão as quatro congressistas do “pelotão” – os candidatos preferidos para derrotar Trump são Bernie Sanders ou Elizabeth Warren, por defenderem políticas progressistas com apoio nas sondagens nacionais, como o alargamento da protecção nos cuidados de saúde, a manutenção do direito ao aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou um reforço do controlo na venda de armas, por exemplo.

Os centristas argumentam que o caminho para a vitória em 2020 passa por reconquistar os estados do Midwest que foram perdidos para Trump em 2016, e os progressistas dizem que os seus líderes estão desfasados da nova realidade do país, e que um candidato mais à esquerda pode galvanizar os eleitores mais jovens, que não votaram nas últimas eleições, e vencer também naqueles estados essenciais.

Apesar da união no Partido Democrata à volta das quatro congressistas da ala mais à esquerda, por causa dos tweets de Trump, as diferenças de fundo entre os dois campos dificilmente vão ficar resolvidas. Pouco depois da votação de terça-feira, o congressista Al Green, do Partido Democrata, subiu ao palanque para ler os artigos do processo de impeachment contra o Presidente Trump, uma proposta que tem sido rejeitada por completo pela sua líder, Nancy Pelosi. O facto de Green ter lido os artigos de impeachment forçou uma votação pela Câmara dos Representantes sobre o assunto, marcada para esta quarta-feira.

"Só queremos lutar"

Num dos momentos mais conturbados do debate antes da votação, na terça-feira, os congressistas do Partido Republicano acusaram a presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, de violar as regras ao referir-se aos “tweets racistas do Presidente”. Uma acusação que marcou todo o debate desde que se soube que a proposta de censura do Partido Democrata contra os tweets publicados no domingo por Trump tinha como título “Condenação dos comentários racistas do Presidente Trump dirigidos a membros do Congresso”.

“Cada um dos membros desta instituição, democratas e republicanos, devia juntar-se a nós na condenação dos tweets racistas do Presidente”, disse Pelosi durante o debate.

Em reacção, os congressistas do Partido Republicano exigiram que a responsável retirasse aquela declaração da acta por violar as regras do debate. Perante a recusa, seguiram-se momentos de grande tensão, e o congressista que comandava a sessão enquanto Pelosi discursava, o democrata Emanuel Cleaver, saiu da sala em protesto: “Parece que não perdemos uma oportunidade para inflamar a tensão. Só queremos lutar uns contra os outros.”

Segundo o manual das regras de debate no Congresso norte-americano, é proibido acusar um Presidente de ser racista ou de proferir “insultos raciais”. Essa regra baseia-se no manual de decoro publicado em 1801, escrito por Thomas Jefferson, então vice-presidente dos EUA e figura máxima do Senado – e conhecido por ter mantido mais de 600 escravos na sua plantação de Monticello.

No final do debate, os 235 congressistas do Partido Democrata votaram a favor da moção e 187 congressistas do Partido Republicano votaram contra. Apenas quatro republicanos e um recém-independente, Justin Amash, votaram ao lado dos democratas na condenação ao Presidente Trump – entre eles esteve William Hurd, do Texas, o único negro na bacada do Partido Republicano.

Segundo um relatório de 2018 do Serviço de Investigação do Congresso norte-americano, Donald Trump é apenas o 5.º Presidente na história dos EUA a ser censurado por uma das duas câmaras do Congresso (a Câmara dos Representantes ou o Senado), depois de Andrew Jackson (1834), James Buchanan (1860), Abraham Lincoln (1864) e William Howard Taft (1912).

Ao longo de quase 220 anos houve apenas mais nove tentativas de condenação de um Presidente em exercício pelo Congresso, todas sem sucesso. E três delas aconteceram nos últimos 20 anos, mais do que uma vez para cada Presidente, o que reforça a ideia de que a divisão na política norte-americana é cada vez mais pronunciada: Bill Clinton (1998 e 1999), George W. Bush (2005, 2006 e 2007) e Barack Obama (2013, 2014 e 2016).

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