João Salgueiro: “A venda do Novo Banco deveria ter sido suspensa e relançada”

João Salgueiro, antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), faz duras críticas ao processo que colocou o Novo Banco nas mãos do Lone Star. E sobre o banco público, diz que haverá casos em que a responsabilidade na concessão de créditos é partilhada entre governos e gestão.

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Daniel Rocha

Para o ex-vice-governador do Banco de Portugal, no que toca à regulação bancária, “o importante não é olhar para o passado, mas prever o futuro e alterar comportamentos”. João Salgueiro alerta ainda para o efeito que a crise teve nos créditos ruinosos da Caixa.

Uma auditoria forense realizada à gestão do banco público, a CGD, no período entre 2004 e 2015, concluiu pela existência de falhas graves com consequências no património. Na qualidade de ex-presidente, de Janeiro de 1996 a Fevereiro de 2000, como é que avalia o resultado?
Não sabemos se o malparado é maior na CGD do que nos restantes bancos. E é por isso que digo que não é possível avaliar a situação da CGD sem a comparar com a dos restantes bancos, sem ter em conta o que também lá se pode ter passado.

Está a fugir à pergunta...
A primeira responsabilidade é naturalmente dos membros do Conselho de Administração (CA), com capacidade própria de decisão e poder para alterar as regras internas quando consideram desejável. Mas não são os únicos comprometidos. A realidade da CGD não é, nem era clandestina, pois há vários patamares de acompanhamento interno e externo: a Assembleia Geral, o accionista, que neste caso é o Estado, as auditoras. Não é possível imaginar que a responsabilidade fosse exclusiva do CA, muito em especial por se tratarem de realidades prolongadas. A supervisão e a regulação constituem realidades inevitáveis com poderes reforçados nas últimas décadas e exigências de reporte minuciosos. Se se quer corrigir a situação é necessário avaliar o sistema de controlo e não apenas o comportamento das administrações.

A EY alega que na CGD foram dados créditos de favor, tomadas decisões ruinosas. Os factos teriam de ser conhecidos do BdP?
Se for verdade, parece-me evidente. Mas não sabemos em que medida a CGD deu créditos de favor. Há várias razões para os créditos entrarem em incumprimento. Não podemos ignorar as consequências das crises de conjuntura nacional e internacional. A La Seda [um dos maiores créditos tóxicos da CGD], por exemplo, entrou em incumprimento e agora, a operação em Sines, é um caso de sucesso. Não podemos esquecer o envolvimento da CGD no assalto ao BCP, investindo e dando créditos em larga escala a clientes accionistas [do BCP] para reforçarem posições. E correu mal. Mas teremos de averiguar se a decisão foi da própria CGD.

Tudo aponta para o facto de a gestão da CGD ter sido instruída politicamente para entrar na guerra pelo controlo de um banco concorrente, o BCP. 
Comigo, e com outros, isso não seria possível. Quando o prof. Sousa Franco, então ministro das Finanças, me convidou para presidir à CGD, só aceitei porque entretanto tinha sido publicada em Diário da República a clarificação das responsabilidades da gestão - créditos cedidos com critérios bancários e operações realizadas por conta e ordem do Estado. 

Mas não evitou confusões? 
Quando começou a haver sintomas de intervenção governamental nas decisões de crédito da CGD, pedi para sair. E saí.

O que levanta a questão: em que medida um gestor de uma empresa pública está a salvo da pressão politica?
Não está, se não decidir sair assim que ela começa. Não é realista pensar que quem tem um banco, uma empresa, não o quer usar. Qualquer accionista privado ou público pensa deste modo. Mas o único responsável pelas decisões do banco é o conselho de administração. Agora, no caso da CGD, se o Estado, como dono, entender que deve financiar projectos, e se o CA entender que não tem sentido fazê-lo numa lógica bancária, então a decisão só poderá ser por conta e ordem do Estado. 

Houve dois episódios conhecidos em que, na qualidade de presidente de um banco público, não seguiu as instruções da tutela. Um relacionado com a Casa do Douro e o outro com a UGT.
Não se trataram de instruções, mas de intenções. Em relação à Casa do Douro, por falta de garantias, dissemos que só autorizávamos o crédito se o cadastro [da Casa do Douro] ficasse nas mãos do banco, pois era a única garantia válida disponível. No outro caso, o Governo considerava que uma certa confederação [a UGT] estava em situação desfavorável, porque as outras confederações podiam utilizar imobiliário como garantia de endividamento. Acontece que a dita confederação não tinha recebido património do Estado, ao contrário da outra confederação [a CGTP] que tinha recebido activos públicos. Então, sugerimos ao Governo que a colocasse [à UGT] em igualdade de circunstâncias [com a CGTP] para permitir ao cliente aceder a crédito. O Estado entendeu que fazê-lo levaria tempo e preferiu dar um aval público ao crédito [à UGT], contra a solução que nos parecia ser a correcta. 

A CGD deve manter-se na esfera pública?
Penso que sim, desde que assegure padrões de bom desempenho ao seu alcance. A CGD opera em concorrência com outros bancos. Em 1974, logo a seguir ao 25 de Abril, optou-se por configurar o BdP como uma empresa e não como um departamento da Administração Pública. A mesma regra foi aplicada a todos os bancos e empresas nacionalizadas. São empresas de um único accionista, mas devem respeitar as mesmas regras que as privadas, sujeitas à disciplina do mercado em matéria de trabalho, relações laborais, encargos fiscais e código comercial. 

A economia de mercado acaba sempre por prevalecer sobre os restantes sistemas?
O que aconteceu em Portugal, em 1976, depois do período das nacionalizações, foi precursor do que se viria a passar na Europa após a queda do muro de Berlim [1989], quando todos os países do Leste e os do Báltico, que vinham de um sistema de planeamento muito centralizado, seguiram o mesmo percurso, adoptando a economia de mercado. E é bem sabido que o mercado tem várias limitações, em relação à repartição dos rendimentos, em relação às crises económicas, em relação à concentração urbana. Resta perguntar por que sendo tão conhecidos os inconvenientes, esses países adoptaram esse ordenamento. E mesmo países que mantém um regime de partido único comunista, como a República Popular da China e o Vietname, seguiram o mesmo caminho. Provavelmente por ser o menos mau dos sistemas, mas deve ser regulado para minorar os inconvenientes. Churchill dizia que a democracia é o pior sistema de todos, com excepção dos restantes. A economia de mercado tem problemas bem conhecidos, mas se não tivermos o realismo, de que o menos mau não é um paraíso, também não se vai a lado nenhum. 

Os empresários queixam-se de que os bancos em Portugal dificultam muito o acesso ao crédito, exigem muitas garantias, mas os banqueiros rejeitam esta tese e dizem que não lhes chegam pedidos de financiamento.
Ouve-se constantemente dizer que é indispensável o acesso das empresas ao crédito para permitir resolver situações de emergência. E ao mesmo tempo, na mesma frase, diz-se que é indispensável que a concessão de crédito respeite maiores exigências de avaliação. Exige-se uma coisa e o seu contrário. Muitas dificuldades financeiras das empresas resultam da falta de capitais próprios e não de recurso ao endividamento. Portugal, há décadas, que é o país europeu em que as empresas mais recorrem (e dependem) a financiamento bancário. E mantém-se escasso o recurso ao mercado accionista.

Há quem sustente que os bancos revelam hoje uma tendência excessiva para sobre valorizar a importância das garantias bancárias. Partilha desta opinião?
O fundamental para qualquer banco não é decidir em função da penhora dos bens que o cliente entrega, porque a longo prazo não faz muito sentido. Em especial no crédito de médio e longo prazo em que o fundamental para a decisão não é tanto a existência de garantia, mas a qualidade do projecto e a sua viabilidade. E também a qualidade dos empreendedores e dos executivos.

Qual é a sua opinião sobre o desfecho da resolução BES, com a venda do Novo Banco ao fundo de private equity norte-americano Lone Star (LS)?
A venda do Novo Banco da forma como correu é difícil de explicar. Primeiro realizou-se um concurso que não chegou ao fim, e apareceu apenas um concorrente. A decisão final não foi assim o resultado de um concurso, mas de uma negociação com um único candidato. Foi um processo a que não se pode chamar de leilão. Em segundo lugar, o concurso não previa que o Estado concedesse ajudas ao comprador, mas o Governo acabou por o fazer, com 3,9 mil milhões de garantias ao LS.

O Governo alega que se não o tivesse feito, o NB ia para liquidação?
Como é que se prova? A venda foi estranha por não corresponder às regras do concurso quando foi lançado. E isto não é aceitável e o concurso deveria ter sido suspenso e relançado.

Pode clarificar o que quer dizer com “não é aceitável"?
As regras do BdP diziam que o concurso podia ser suspenso em qualquer altura, desde que fosse para melhorar o seu resultado final. E quando, em Abril de 2017 foi anunciado que o LS tinha sido seleccionado para ficar com o NB, disse-se que o comprador teria assegurado um mecanismo em que o Estado cobriria os prejuízos até 3,9 mil milhões. Tornou-se então flagrante que garantias tão avultadas configurariam uma venda em situação distinta dos objectivos estabelecidos inicialmente. E tornou-se tão flagrante que surgiram na imprensa vários artigos de opinião a aconselhar a abertura de novo concurso com a nova condição [o mecanismo de compensação de prejuízos]. 

Suspender o concurso na fase final, e após seleccionar o LS, não abria espaço a guerras judiciais?
Mas havia uma clarificação de que o NB seria vendido à entidade que exigisse o menor montante de garantias, reduzindo assim os custos para os contribuintes. E se outra entidade que não o LS saísse vencedora, o LS poderia sempre cobrir a jogada. Não era difícil. Pelo contrário [Governo e BdP), até formalizaram mais cedo a venda do NB ao LS.

Há um problema de regulação?
Hoje não há falta de regulação. Desde a crise que a União Europeia tem vindo a produzir regulação em contínuo. Porque é que havendo tanta regulação continuam a ocorrer casos como este? Porque é que não se preveniram? O importante não é olhar para o passado, mas prever o futuro e alterar comportamentos.

Continua a achar que Portugal vive acima das possibilidades?
Pelo contrário, estamos é a viver abaixo das nossas possibilidades. Um país pequeno como o nosso tem todas as possibilidades para atrair recursos, basta querer e criar as condições de atractividade. Veja o que se passou com o turismo que nos inundou de repente, quando a insegurança no Médio Oriente nos criou novas condições relativas de atractividade. Mas não estamos a conseguir atrair poupanças e capitais porque outros países são mais atractivos. 

Qual o balanço que faz do governo de António Costa? 
Teve o mérito de defender uma atitude positiva para ir ao encontro das aspirações dos portugueses. Mas a comparação da nossa situação actual com os piores períodos da década anterior não inspira uma estratégia vencedora. De facto a medida do nosso sucesso tem que ser justificada pelo desempenho face aos restantes países europeus, o que, infelizmente, levaria à conclusão de que longe de assegurar convergência, tem evidenciado a divergência face aos novos países membros da UE e à própria Espanha. Neste momento o desempenho económico do país tem criado sentimentos de desconforto crescentes. O que se verificou noutros países mostra que isso, facilmente pode ter reflexos eleitorais.

Que mensagem está a passar?
Inexplicavelmente, o Governo tem alimentado permanentes conflitos institucionais. Está em guerra com os sectores da saúde, da educação, das Forças Armadas, das forças de segurança, com a justiça, com os bombeiros. É mais difícil de compreender o ataque ao sector privado. Num momento de falta de recursos, em especial, não faz sentido alargar os encargos para o orçamento nos sectores da educação e da saúde, quando o peso dos impostos é evidente.

Concorda com as críticas que surgem do lado do PCP e do BE de que o Governo, que apoiam, está a contribuir para deteriorar o serviço público, o que acaba a beneficiar o sector privado?
Claro. E deve gastar com o serviço público o que tiver de gastar. Ou então economizar. Mas se oferece às pessoas o direito à escolha, então deve financiar a parte que corresponde a essa despesa média. E se as pessoas quiserem pagar mais pelos serviços, então que paguem.  Não percebo porque é que o Governo não quer ser aliviado de alguma despesa. 

O que sugeria ao Governo para melhorar a qualidade de vida dos portugueses?
Que olhasse para os bons exemplos. Quando colaborei num grupo de estudo da reforma da Administração Pública, estudámos o que se fazia na Dinamarca no sector da Educação, onde as escolas são geridas por um conselho de administração (CA) não executivo eleito pelas instituições locais, autarquias, associações economias, desportivas e culturais. E para executar um programa esse CA escolhe um gestor profissional, que fica encarregue de negociar com o Ministério da Educação (ME) da Dinamarca o financiamento a três ou cinco anos. E o ME avalia se os objectivos apresentados pelo gestor são compatíveis com as metas traçadas para as escolas. Se a Escola tem um problema de segurança, então é o gestor que o tem de resolver e não vai telefonar para Copenhaga. Quem contrata os professores é o gestor. E o sistema adoptado na Educação deu bons resultados e foi copiado para a gestão das estradas. 

É esta via que defende para melhorar o sector da educação?
Defendo uma maior autonomia para as universidades portuguesas, nomeadamente em termos de financiamento. O facto de haver mais autonomia nas universidades nacionais, ainda que insuficiente, já permitiu alguma melhoria no seu desempenho quer em termos do ensino, da inovação ou da investigação. No Porto, no domínio da Saúde faz-se boa investigação, mas os centros de investigação têm dificuldade em se comprometer com um programa de médio prazo pois nunca sabem qual é o orçamento que lhes será atribuído que depende de decisões anuais. 

Tem feito criticas à actual gestão da Câmara Municipal de Lisboa (CML)?
A CML avançou com uma intervenção na Rua da Palma, sem ouvir ninguém. João Soares ofereceu um bom exemplo, pois quando quis fazer um teleférico [para ligar ao Castelo] submeteu a decisão à consulta pública [que rejeitou a solução] e o projecto foi cancelado. A actual CML não sente necessidade de colocar qualquer decisão a consulta pública quer ao nível da zona metropolitana, quer da cidade, quer dos bairros.

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