Jorge Silva Melo: viver entre as palavras

Boa parte da sua Lisboa já não existe e, quando uma cidade muda, muda também o seu teatro. O encenador acaba de publicar o segundo volume das suas memórias, A mesa está posta. Nele reúne 50 anos de textos sobre teatro, os seus autores de sempre, os seus "queridos actores".

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Escolhe conversar num lugar que conhece bem, no seu bairro de sempre (ou quase). O jardim das Amoreiras faz parte da geografia de Jorge Silva Melo desde que, regressada de Angola, a sua família se estabeleceu definitivamente em Lisboa. Ali bem perto fica o Bloco das Águas Livres, edifício que estava ainda em construção quando por ele passava a caminho da escola. “Quando era miúdo este bairro estava cheio de famílias judias: os Mucznik, os Arons de Carvalho, os Ruah… Era o bairro das explicações, onde as senhoras bem ensinavam música, francês e alemão. Era muito cosmopolita”, recorda agora que, aos 70 anos, lança A mesa está posta (Edições Cotovia, 2019), o segundo volume das suas memórias.

Actor, encenador, dramaturgo, realizador e tradutor, cronista talentoso, reúne nesta obra com organização da jovem investigadora Leonor Buescu textos sobre teatro escritos ao longo dos últimos 50 anos — notas dispersas, ensaios, entrevistas, breves retratos de actores, uns inéditos, outros publicados em jornais, folhas de sala ou edições marginais —, depois de Século Passado (o primeiro tomo desta viagem no tempo que saiu também com a Cotovia, em 2007) se ter concentrado no cinema, por onde tudo começou, se não contarmos com os livros que lia avidamente desde sempre (às vezes cinema e teatro também se encontram, como quando encenou em 2017, no São Luiz, A Noite da Iguana, um texto de Tennessee Williams que ali vira mais de 50 anos antes num filme realizado por John Huston).

“São cinquenta anos insistentes, felizes, teimosos, sempre a defender, ó monotonia!, essa coisa mais linda que é viver entre palavras, palavras de outros, antigos, modernos, tantos”, escreve no arranque desta obra com 400 páginas que parece feita não para ler de uma vez, mas para que a ela se regresse de vez em quando para o “ouvir”.

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Actor, encenador, dramaturgo, realizador e tradutor, reúne textos sobre teatro escritos ao longo dos últimos 50 anos — notas dispersas, ensaios, entrevistas, breves retratos de actores, uns inéditos, outros publicados em jornais, folhas de sala ou edições marginais. São textos sobre teatro, são textos sobre a vida daniel rocha

Os textos que constam deste A mesa está posta são sobre o teatro, mas são também sobre a vida, porque os dois se misturam, como se misturam nos dias o que fomos e o que somos, o que vimos e o que vemos. Quando percorre hoje a cidade, Silva Melo já tem dificuldade em reconhecê-la e em parte é por isso que lhe sabe bem continuar a morar neste seu bairro de infância. “Vivi uns tempos em Campo de Ourique mas, depois da morte dos meus pais, resolvi comprar a casa deles, nossa, e voltar. Fazia-me muita impressão pensar nela com estranhos lá dentro. Imagino que, depois de morto, já nada me faça impressão [risos].”

Nas suas andanças diárias entre casa e o trabalho, nunca se afasta muito do eixo Largo do Rato — Jardim da Estrela. A base dos Artistas Unidos, companhia que criou em 1995 e ainda dirige, é na Rua da Escola Politécnica — é no Teatro da Politécnica, aliás, que se prepara para estrear a 27 de Março Ballyturk, peça do irlandês Enda Walsh — e os seus escritórios são no n.º 60 da Rua da Estrela, a mítica morada que já pertenceu a outro dos grupos de referência do teatro português, O Bando.

“A cidade tem mudado muito. Não sei se é mau no geral, mas é mau para mim. E como a cidade muda, muda o teatro. Não sei onde ir jantar, fazem-me falta também os cafés do Saldanha, da Avenida da República e de Entrecampos. Fazem-me falta o Chiado Terrasse e o Imperial [dois cinemas]. Nós [Silva Melo e a irmã, Maria Adélia] íamos com os meus pais ao cinema ao domingo e era eu que escolhia os filmes.” Como O Tesouro de Sierra Madre, que viram no Condes num dia em que Lisboa tremeu e os Restauradores tiveram direito a manifestação de estudantes, “ainda o Éden era o [Cineteatro] Éden”.

“Gostava de ter sido mais vadio”

“A memória fixa-se em palavras e eu não posso viver sem elas”, diz este homem que começou a escrever nos jornais aos 14 anos (sobre cinema, no suplemento juvenil do Diário de Lisboa) e que foi também tradutor. “O trabalho do actor e o do tradutor é muito parecido. Os dois entram nas palavras do outro, mesmo quando ele é muito desarrumado, como o Tennessee Williams”, um dos seus dramaturgos de eleição.

Escrever continua a dar-lhe um imenso prazer — “acho graça rever e corrigir o estilo, não as gralhas” — e talvez por isso não afaste a possibilidade de manter (e publicar?) um diário. “Quando se acorda às 4h30 ou às 5h da manhã como eu tem-se muito tempo até às 10h em que não se pode fazer barulho. Escrever não faz barulho.”

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Ao longo de 400 páginas, são muitas as referências à Lisboa que já não existe, aos autores a que regressa sempre. Mas é nos actores que mais se concentra daniel rocha

Quando hoje olha para os textos que escreveu nos últimos 50 anos, mesmo para os mais antigos, assusta-o a coerência. “Há coisas que eu digo exactamente iguais desde 1971. Não é que isso me incomode, mas gostava de ter sido mais vadio.”

Ao longo de 400 páginas, são muitas as referências à Lisboa que já não existe, aos autores a que regressa sempre e ao projecto falhado do espaço A Capital, que queria ter conseguido transformar na casa dos Artistas Unidos. Mas é nos actores que mais se concentra. Conta histórias, relembra o dia em que os conheceu, fala dos que mais lhe fazem falta. Alguns têm direito a “retratos” breves neste livro atravessado pelas noites de estreia, pelo cinema, os cigarros, os teatros e os cafés onde não era preciso marcar nada para encontrar os amigos, as madrugadas de insónia, os que já morreram.

Actores como Manuel Wiborg, Sylvie Rocha, António Simão, Joana Bárcia, Pedro Carraca, Miguel Borges, Isabel Muñoz Cardoso, Nuno Lopes, Paulo Claro, Maria João Luís, Rúben Gomes, Pedro Gil, ou os que vêm de um passado mais longínquo, como Lia Gama, Glicínia Quartin e João Perry, fazem parte do seu universo.

“Os actores têm dentro de si inesperadas personagens, máscaras, poesias”, escreve a propósito do elenco de uma peça de Tennessee Williams. “Que cada espectador possa guardar dentro de si a ousadia destes artistas cuja disponibilidade não sei se merecemos. Olha, foi uma aposta. E foi feita com os actores, por eles. Eles que me levaram a dançar” (p. 344).

Os que mais lhe interessam, não se cansa de repetir, são indefesos, têm “feridas absolutas”, como Montgomery Clift e Judy Garland. “Se tivesse dinheiro, aqui em Portugal, adoraria trabalhar com a Alexandra Lencastre, que me parece fabulosa em toda a sua fragilidade”, diz ao Ípsilon. “Há actores que vemos no cinema ou no teatro e com quem nos apetece ir tomar um copo a seguir. E há outros que não. Por exemplo, o [Gérard] Depardieu — até ao Cyrano de Bergerac, depois disso começa a transformar-se numa caricatura má — é daqueles com quem seria capaz de ficar à conversa. Já não me passaria pela cabeça convidar o Daniel Day-Lewis para sair porque ele mete-me medo com toda aquela perfeição. O actor precisa de um lado tosco, imperfeito, porque a vida é insuficiente.”

Os actores tensos e luminosos, vulneráveis e inacabados, generosos e intensos, inteligentes e imensos, daqueles que levam tudo para palco, deixando que o espectador lhes veja, escreve, a alma e os ossos. São assim, garante Silva Melo, os que com ele têm vindo a entregar-se aos seus autores de sempre, tantas vezes referidos ao longo do novo volume da Cotovia: Gorki, Ibsen, Goldoni, Pirandello, Tchékhov, Brecht, Büchner, Williams, Pinter

“Os autores que mais me marcaram são os do realismo e os da destruição do realismo”, diz. “Goldoni, Ibsen, Gorki…” Silva Melo acredita mesmo, como Brecht, que tudo é susceptível de ser teatro, desde que o texto não seja apagado no meio do ruído, desde que seja servido por actores daqueles que se dão, indefesos, sem medo de falhar.

“O teatro que me interessa não tem nada, nada, nada mesmo nada a ver nem com a magia nem com as variedades. Penso num teatro que foi possível ser o próprio corpo do pensamento, a vivência concreta da História e da Política”, escreve o dramaturgo e encenador, antes de rematar: “Eu não entendo um teatro sem escrita” (p. 193).

O salão nobre

Em ensaios mais profundos sobre determinado autor, em entrevistas com jornalistas ou programadores como Anabela Mota Ribeiro, Ana Sousa Dias e Francisco Frazão, e até em pequenas notas, como aquela em que assinala o suicídio de um jovem actor portuense que não chegou a conhecer, Jorge Silva Melo vai dando a ver ao leitor o seu teatro, mostra-lhe a forma como se relaciona com o meio e coloca-se muitas vezes no lugar daquele que observa.

Para ver bem, diz, o público precisa de escolher um lugar da plateia onde não esteja nem muito longe, nem muito perto do palco. É também aí, agora em sentido figurado, que o encenador se deve colocar, tarefa difícil. “O melhor lugar para ver todas as coisas é esse que imaginamos, na oitava ou na décima fila. É assim no teatro, é assim na vida. Mas só resulta, tanto para o público como para o encenador, se à sua frente estiverem actores vulneráveis. O actor que se impõe chega mais dificilmente ao público, chega sempre mais tarde. É a fragilidade do actor que nos chama, que nos atrai, que nos seduz. Ela não invade a nossa intimidade, não ameaça o que nós não queremos que se veja.”

O teatro partilha a ideia de segredo com o seu público, mesmo que não partilhe os segredos em si – cada um guarda os seus. “Pega, por exemplo, na Gata em Telhado de Zinco Quente [outra vez Tennessee William, peça encenada por Silva Melo em 2014, com Catarina Wallenstein e Rúben Gomes nos papéis que na célebre adaptação cinematográfica de Richard Brooks couberam a Elizabeth Taylor e Paul Newman]. Há um segredo à volta do que aconteceu nos anos em que o casal esteve separado durante a guerra, um véu muito grosso sobre a relação do Brick [Newman] com o amigo. Esse segredo — a homossexualidade daquele homem que agora não consegue satisfazer na cama a sua mulher deslumbrante — paira sobre o filme, sobre a peça. É preciso que haja sempre um segredo no teatro para que o público se sinta atraído. Há qualquer coisa que tem de ficar em suspenso.” O mesmo se passa com os actores: “Se um actor mostra tudo eu não posso ficar intrigado e, sobretudo, não me posso apaixonar por ele.”

Passados 50 anos — lê-se nos textos, adivinha-se-lhe nas palavras, à mesa da esplanada no Jardim das Amoreiras —, há coisas que Silva Melo continua a não compreender e a não aceitar no circuito do teatro em Portugal. “Quando alguém programa uma peça para ser apresentada três dias está a dizer ao público para não ir, porque em três dias só dá para os primos passarem por lá”, diz, acusando os poderes públicos de terem deixado de apostar nas companhias, nos actores e nos encenadores, para optarem por dar a impressão de “festa permanente” em salas cada vez mais faustosas. É sobre isto que escreve, aliás, em “Voltou o salão nobre”, texto em que evoca o projecto basilar dos seus Artistas Unidos, no Bairro Alto. “Houve, durante uns tempos, um teatro novo na cidade, foi A Capital, as ruínas de um velho edifício, uma alegria, o gesto diário de gente que não se deixa vencer e quer. Quer o quê? Quer estar com os outros, sair do deserto, rir. Pensar. Que sempre foi esse o mais profundo prazer do teatro: pensar. Viver a pensar. Já tudo se sumiu, os teatros feios fecharam, os teatros pobres faliram. Os teatros agora são em salas restauradas (nem sempre bem), cada vez em menor número, cada vez mais nobres. Voltou o Salão Nobre para este teatro que pensáramos Republicano?” (p.215).

Como espectador, Silva Melo procura cada vez mais os teatros pequenos, os espaços marginais onde pode encontrar uma “novíssima geração”. Enquanto continua a trabalhar com os Artistas Unidos, anda também a escrever uma peça de teatro, mas está ainda “muito inseguro” em relação ao que tem no papel. Dedica-lhe meia hora por dia, pouco mais, assim que se levanta, ainda de madrugada. A poesia e a ficção nunca o atraíram. “Foi sempre o teatro. A palavra no teatro, a sala vazia.”

Pensar num teatro sem público na plateia transporta-o para o Scala, em Milão, onde assistia a meia hora do ensaio matinal da orquestra, conduzida por Riccardo Muti (estava na altura na cidade a trabalhar com Giorgio Strehler, fundador do Piccolo Teatro di Milano), e para a Schaubühne, mítica sala de Berlim onde estagiou com Peter Stein. “Adoro estar num teatro vazio. Por isso são estranhos os dias de estreia, quando o público ali entra pela primeira vez, enchendo o espaço que era só nosso com aquele rumor…”

Saudosista, reaccionário, nostálgico

Aos 70 anos, Silva Melo olha para trás — “é inevitável”, reconhece —, mas olha também para o presente e para o que há-de vir — “é preciso”. E continua a deixar no ar perguntas, mesmo sabendo as respostas, como no caso das que constam do falso epílogo deste A mesa está posta (p.398): “Já arrumei as botas? Já não quero saber do novo que todos os dias deveria nascer? Estou saudosista, estarei reaccionário? Apenas à procura de tempos que já fizeram história, a mordiscar madalenas embebidas em chá? Ao situar-me a contrapelo do teatro que anda a ser imposto (oficialmente, sim), ao reclamar um teatro que havia de ser segredo de cada noite e não estridente festejo do Poder, onde estou? O teatro é aquilo que nos ficou da adolescência, aquilo que eu queria ver quando galgava, a dois e dois, os degraus para o segundo balcão do Tivoli, tinha eu dez anos e queria que aqueles segredos fossem meus? Não sei, ainda queria estar convosco, pois era.” E está: com os leitores, com o público.

“Foram-se embora os actores, eu vim para o pátio apanhar ar e os primeiros chuviscos e dei comigo a pensar que pouca gente, muito pouca mesmo, nesta Europa culta, tem esta sorte que tenho, vir ao fim da manhã para um enorme barracão que nos foi cedido pelo Exército, ali a São Vicente, um cigarro por baixo das laranjeiras carregadas, um ensaio com três bocados de madeira, uma alcatifa reles, dois termos com chá e dois actores, e onde vamos, devagarinho mas corajosamente, desbravando a poesia para quem, um dia destes, quiser vir ver-nos. Quando voltei para casa mandei um email ao [dramaturgo norueguês] Jon Fosse dizendo-lhe como estava feliz, e ele respondeu-me que também” (p. 336).

Hoje, diz, a solidão custa-lhe menos. “Antes, há uns dez anos, estar sozinho, adormecer numa casa vazia, aterrorizava-me. Agora, na maior parte dos dias, gosto de chegar a casa e saber que não vou ter de me esforçar para conseguir ouvir o que alguém me diz. Deve ser também isto a velhice… [pausa]. A velhice é o diabo. Tinha 20 anos em 1968 e, talvez por ter tido uma juventude muito intensa, sou hoje muito nostálgico.”

O que lhe interessa continua a ser “ver o palco como o lugar da incerteza” (p.183), embora gostasse que fosse menos incerto o futuro dos seus actores. “Queria deixar-lhes algo que lhes fosse útil, um teatro, mas já sei que isso não vai acontecer. Queria que alguém lhes dissesse, depois de mim, que o que eles fazem é importante.”

Ouvi-lo falar, horas antes, e ainda que brevemente, das cartas trocadas entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, que estão hoje numa fotografia do seu exílio carioca na fachada do museu que lhes é dedicado ali mesmo, no jardim, faz-nos ir buscar a pergunta que lhe deixou Eric Young, um amigo que não via há muito tempo e que reencontrou em Lisboa. Têm a mesma idade, conheceram-se nos anos 70 em Londres, onde Silva Melo estudou cinema e tinha um apartamento onde às vezes dormiam os amigos dos amigos. “Did you ever find love, Jorge?”. Em A mesa está posta ficamos sem saber se o Jorge lhe respondeu.

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