Cuidado com os dentistas – um aviso de Heiner Müller

No arranque de novo ano no Teatro da Politécnica, em Lisboa, Jorge Silva Melo encena e interpreta um conjunto de escritos do poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller. Ájax, por Exemplo e Outros Textos põe a nu um lado mais autobiográfico e deixa ver a unificação alemã como o fim da tragédia – o que, para Müller, não é coisa boa.

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Sentado a uma mesa, rodeado de livros, Jorge Silva Melo tentará recriar no Teatro da Politécnica o quarto do dramaturgo alemão JORGE GONÇALVES

Heiner Müller recebeu, em 1985, o Prémio Büchner, num valor equivalente a duas próteses dentárias. Com o montante dessa elevada distinção literária (para os autores em língua germânica), foi isso que fez tempos depois – instalou-se num hotel em Berlim e foi tratar da dentição. Mas este saldo de carreira é tudo menos inocente. Müller escreve do interior daquilo que denomina “o século dos dentistas”. E que Jorge Silva Melo, de quem foi amigo, esclarece dizendo que essa “é uma imagem que ele usa sempre para descrever a República Federal da Alemanha, porque os dentistas eram considerados os homens que ganhavam mais dinheiro em todo o país”. “Atacava o teatro da Alemanha Ocidental dizendo que era um teatro para dentistas – a burguesia culta.” Portanto, a legitimação institucional do autor – um passaporte carimbado e reserva de voo para o Nobel em Estocolmo, dizem muitos –, quis usá-la como forma de pagamento onde sabia que a moeda era bem aceite.

Só que Büchner e os dentistas sinalizam, de certa forma, uma derrota. Pessoal por ricochete e por convicção política, mas que Müller alarga precisamente à unificação alemã em 1990. Ájax, por Exemplo, onde faz o seu “excurso sobre revolução e medicina dentária”, é escrito desse quarto de hotel, com televisão ligada e vista sobre uma cidade em mudança, que é também uma civilização dizimada. Da janela, os olhos de Müller “pousam na estrela da Mercedes/ girando melancólica no céu nocturno/ por sobre o ouro dos dentes de Auschwitz e outras filiais/ do Deustche Bank”. Os dentes, uma vez mais. “Essa descrição do céu de Berlim com o logótipo da Mercedes a rodar por cima dos cemitérios de Auschwitz”, defende Silva Melo, “acontece porque ele acha sempre que foi com o ouro dos dentes dos judeus de Auschwitz que se fez a fortuna do Deutsche Bank”.

A civilização comunista em que Müller cresceu está, por esta altura, a bolçar os seus últimos soluços de sangue às mãos do capitalismo. E é dessa ideia que se extrai das palavras de Müller no poema Ájax, por Exemplo (nome do espectáculo em cena no Teatro da Politécnica, Lisboa, de 7 a 17) uma imagem da unificação que o encenador e actor compara a “uma espécie de terraplanagem de todas as diferenças, ficando no seu lugar uma auto-estrada sem memória”. O novo enterrando o velho acabado de cair por terra, sem tempo para cerimónias fúnebres. Uma eliminação imediata, enxuta. “O touro foi abatido (…) Nunca mais os deuses te visitarão”, escreve ainda Müller. E a ligação faz-se a Zeus, deus grego que um dia se perdeu de amores pela princesa Europa e se transformou num belo touro branco para tentar raptá-la. A Europa que Müller então via estava ao abandono. Nenhum deus voltaria a apaixonar-se por ela.

A televisão no quarto de Müller está ligada, recordemos, enquanto este se questiona se vale ainda a pena escrever uma tragédia. E, como que fazendo jus ao zapping que o aparelho implora, espelha essa sua tendência natural numa escrita que convoca Zeus, Sófocles (o autor do Ájax original) ou “Trótski com o cutelo de Macbeth ainda cravado no crânio”. A cultura clássica, sobretudo os clássicos gregos, atropelam permanentemente os seus textos, irrompem a meio das frases, naquilo que Silva Melo define como pensamento por curto-circuitos ou escrita eléctrica. “É sempre por justaposição muito rápida que funciona. É sempre uma justaposição pelo seu amor a Rimbaud e sobretudo a Lautréamont, o que torna o seu teatro estranhíssimo.”

A cultura clássica atravessa os textos porque Heiner Müller não evitava ler e buscar na contemporaneidade os espelhos da mitologia grega. “Ele estava sempre a ver como Atena, Electra, Antígona estavam na mulher da rua”, confirma Silva Melo que, ao lado de Müller, fez uma marcante leitura de A Decisão, de Brecht, no parisiense Centro Pompidou. Mas se os clássicos inundam a sua escrita, a verdade é que o autor também recorre à cultura popular. Não movido pelo desprezo, defende Silva Melo. Quando salta de Tróia para “Arnold Schwarzenegger na Tempestade no Deserto/ Para me fazer entender pelos leitores de hoje” não se tratará, afinal, do seu humor ácido. “Ele odeia o lado mercantil da cultura pop, mas tem um grande fascínio por grupos como os Einstürzende Neubaten ou que roçam a música pop.”

 

Polémica e provocação

Ájax, por Exemplo e Outros Textos agrupa vários escritos com um cunho mais autobiográfico que Jorge Silva Melo apresentará num misto de leitura e representação no Teatro da Politécnica. Sentado solitariamente a uma mesa, rodeado de estantes de livros que tentam recriar o quarto do dramaturgo alemão, pela sua boca ouvir-se-ão o Suicídio de Séneca, O Bloco de Mommsen, bizarro relato onírico em que a filha do escritor termina pendurada num baloiço, olhando-o, pedindo-lhe ajuda sem que ele possa ajudá-la, e O Pai, um dos seus textos mais abertamente debruçados sobre a biografia. Na sua maioria, não foram escritos para cena, embora pudessem vir a ter esse fim – excertos de Ájax acabariam por integrar o texto de Germânia 3 – Morte em Berlim –, até porque nesta altura Müller encontrava-se na direcção do Berliner Ensemble, com vários afazeres que lhe roubavam a disponibilidade criativa que um quarto de hotel feito sala de espera de dentista podia proporcionar.

E se mencionamos o Berliner Ensemble e os dentistas – onde andaram eles, nos últimos parágrafos? –, é bom lembrar que Ájax, numa das suas visitas cifradas à realidade, menciona um dos co-directores da companhia fundada por Bertolt Brecht em 1949, nomeados após a unificação. “Peter Zadek mostra os dentes a Berlim”, cita o dramaturgo, relativamente a um letreiro luminoso numa das principais avenidas da cidade que anunciava o tom desafiante de um novo espectáculo de Zadek. Ao que Müller acrescentava “Beware of dentists”. “O Heiner queria a polémica e a provocação, o Zadek queria uma obra equilibrada, bem feita mas sem polémica”, compara Silva Melo. Os dentistas queriam arrancar dentes. E enquanto enriqueciam nesse labor, parece dizer-nos Müller, tratavam também de anestesiar e roubar a ferocidade. A tragédia acabara. Em parte, porque já não ameaçava ninguém. Bem podia ladrar que já não seria capaz de morder.

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