O último Arlequim

O italiano Ferrucio Soleri é hoje sinónimo de Arlequim, a personagem emblemática da Commedia dell'arte. É também uma referência do Piccolo Teatro di Milano, ao lado do encenador desaparecido Giorgio Strehler. Esta companhia que tem mais de 50 anos apresenta em Lisboa e Almada três das suas peças de repertório. Um momento histórico para os espectadores portugueses. O Arlequim falou ao PÚBLICO.

"O teatro pareceu-me sempre uma arte incrível, uma das mais nobres na sua terrível imperfeição", Giorgio Strehler"Este 'Arlequim' de Strehler que vão ver no Festival de Teatro de Almada é a última encenação do mestre, das nove que fez ao longo da sua vida, desde a estreia em Milão, em 1947. Está exactamente como ele a deixou, alegre, terna, ingénua, mágica, popular", disse o actor Ferrucio Soleri em entrevista ao PÚBLICO. Apesar dos seus 70 anos, Ferrucio Soleri, o maior Arlequim do teatro mundial, depois da morte de Marcello Moretti, em 1961, mantém uma vitalidade espantosa e mostra, na perfeição, o que é ser um intérprete goldoniano da "commedia dell'arte", género de comédia popular italiana dos séculos XVI e XVII, feita por companhias de saltimbancos, e que o Piccolo di Milano fez ressuscitar através do seu ex-director e encenador Giorgio Strehler. "Arlequim Servidor de Dois Amos", de Carlo Goldoni, estreia-se dia 7, no Centro Cultural de Belém, às 21h00, espectáculo integrado no Festival Internacional de Teatro de Almada que depois de amanhã se inicia nesta cidade. As outras duas peças do Piccolo são "A Grande Magia" de Eduardo De Filippo que se estreia já amanhã, às 21h00, no CCB, e "Como Está a Noite?...Clara", homenagem a Strehler, no dia 5, às 22h, no Teatro da Trindade. É a segunda vez que o actor Ferrucio Soleri apresenta o seu Arlequim em Lisboa. Em 1967, fez dois espectáculos com grande sucesso, no Teatro S. Luiz. A sua interpretação mexeu com os actores e o público da época e criou adeptos, entre os quais Luis Miguel Cintra. Ferrucio esqueceu os nomes desses actores e de outros que trabalharam com ele em Itália, mas lembra-se de um: Raul Solnado. "Agora vão ver um Arlequim mais acrobático, mais experiente, com uma alegria de viver ainda maior, terno e cómico ao mesmo tempo, uma verdadeira fantasia popular. O décor desapareceu face à encenação de 67 e valorizou-se ainda mais o trabalho dos comediantes, entretanto, com mudanças no elenco, e o desenho de luz. Há apenas um céu, 'pára-ventos' e duas pequenas mesas", disse Soleri.Este actor tomou o lugar de Moretti, após a morte deste - substituiu-o na digressão pelos EUA, no final dos anos 50 - mas desde logo começou a imprimir à personagem do Arlequim a sua marca pessoal. Tornou-a mais directa, mais popular, mais manhosa, mais cúmplice e divertida. O Arlequim de Moretti era mais triste e intimista, mais evocativo de um estilo e do gosto de uma época, na tradição da commedia dell'arte. Foi Paolo Grassi, o fundador do Piccolo com Strehler, quem convidou Ferrucio e lhe propôs um contrato para integrar a temporada de 1962-63, onde fez de João de Medicis em "Galileu" de Brecht. Mas foi Strehler a figura decisiva para Ferrucio na construção do personagem de Arlequim. Strehler foi à tradição e deu-lhe uma comicidade estridente e em falsete, actualizada ao humor de hoje. "É a Strehler que devo a minha personagem. Com Moretti, de quem tenho boas recordações, apenas trabalhei 15 dias. Ele dirigia os ensaios e dizia-me para fazer assim e assado, mas não me explicava porque devia fazê-lo daquela maneira. Eu era um jovem e fui apenas o seu duplo. Com Strehler mudei tudo, nomeadamente a voz. Ele dizia-me para treinar a ler o jornal sem nunca parar, até ter fôlego e recomeçar. Fui trabalhando com ele. Foi muito árduo, mas consegui o que ele queria. A ele lhe devo tudo o que sou", salientou Ferrucio Soleri.Há uma frase de Strehler que Ferrucio diz que nunca mais esquecerá: "Não percebo, tu envelheces, mas o teu Arlequim está cada vez mais novo. Como é que consegues?". É essa vitalidade que Ferrucio vai demonstrar em Lisboa, uma força que tem a ver com o espírito Strehler, o que equivale a dizer, o espírito Piccolo tal como existia no seu tempo e que, tal como a personagem do Arlequim, tem hoje dificuldade em sobreviver. "Os problemas do teatro contemporâneo são outros hoje. Há mais compromissos e o teatro tornou-se mais intelectual. Há também mais dificuldades no teatro de rua, complicações de toda a espécie. O Arlequim é uma personagem saída, identificada e amada pelo povo e os próprios actores eram saltimbancos, o que tornava a ligação ao público mais directa. Hoje ninguém se interessa pelo Arlequim. Trabalha-se muito mais com as ideias e criou-se, por isso, um maior distanciamento com o espectador", sublinha Ferrucio.Foi Carlo Goldoni (Veneza, 1707 - Paris, 1793) quem "matou" a commedia dell'arte, género que tanto influenciou Molière e Marivaux e deixou seguidores, cada um no seu estilo, como Marcel Marceau ou Jean-Louis Barrault. Foi ele quem transformou a máscara em teatro de personagem e pôs de lado alguns dos estereótipos da commedia dell'arte. Por isso, Ferrucio o considera "um dramaturgo de ruptura, criador do teatro moderno". Foi ele quem contrapôs aos 'gags' repetitivos e pouco inovadores, uma comédia que reflectisse os costumes e a sociedade italiana, em particular a veneziana. O dialecto de Veneza era compreendido pelo povo, enquanto o da Toscana era erudito. Assim nascia o realismo sem máscara.Goldoni deu ao Arlequim uma dimensão mais heróica, deixando-lhe o perfil de papa-jantares e o seu figurino típico de jaqueta curta e calças coladas ao corpo, um fato feito de retalhos de tecido com um pau amarrado à cinta, mas diluiu-lhe o recorte de "pateta". Tornou Smeraldina (a criada) em porta-voz das mulheres reprimidas pelo mundo dos homens e o próprio Pantalone (velho avarento) ganhou o aspecto de burguês veneziano simpático.Goldoni foi, como escreveu Strehler, não só um homem de teatro, mas um homem "terrivelmente humano, portanto desarmado perante o mal, que viveu tudo dentro da realidade do seu século e soube promovê-la dentro da ideia de que a arte é para todos, sem engano". Mas Goldoni gostava de dizer apenas isto: "Eu, aliás, não escrevo sermões para ensinar, mas comédias para honestamente divertir".

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